O OLHO VIRTUAL

Simone Saueressig

        A última novidade que nos reuniu à todos na casa de Eduardo e Sandra, foi a instalação da Internet. Para a ocasião, convidados de alto estilo: Chico, nosso informático por exelência, Lucas e Bêre. Também estive, na condição de penetra. Sandra nutre uma sólida desconfiança contra mim, porque fui namorada de um antigo namorado seu.

        Uma semana depois, telefonou -nos, muito aflita.

        —O Chico está?

        Não, não estava. Estava na firma, porque ela não ligava para lá?

        —Eu liguei, mas me disseram que ele tinha saído urgente.

        Expliquei que às vezes ele tem de sair para fazer algum concerto fora da loja. Sandra suspirou um pouco irritada. Deixei que pensasse um pouco e depois ofereci-me educadamente para passar-lhe o recado assim que chegasse. Ao invés de decidir-se, perguntou:

        —Marta, você entende alguma coisa de Internet?

        Não muito, comentei. Meu meio é a pintura, não a informática, mas convivendo com alguém como o Chico, a gente sempre termina aprendendo alguma coisa.

        —Meu computador está fazendo uma coisa muito rara. Você quer vir e dar uma olhadinha?

        Estive à ponto de dizer que não, mas a verdade é que seria uma ótima oportunidade para conversar e deixar bem clarinho que, dependendo de mim, Eduardo não corria nenhum perigo de deixá-la a ver navios. De modo que terminei concordando.

        Muita gente telefona lá para casa, perguntando pelo Chico com mais ou menos o mesmo problema: o computador fazia algo raro. Imaginei que ela tivesse pegado algum vírus na rede, ou que, talvez, tivesse apagado alguma coisa importante para o funcionamento da máquina. Lembro de uma vez em que acabei um bom pedaço de um programa, tentando apagar um arquivo inútil. Bem, a verdade é que eu não sou muito interessada por essa máquininha cheia de luzes e botões, onde as coisas não existem de verdade e para as quais minha constumeira distração constitui uma autêntica assombração.

        Tive de esperar vários minutos, até que Sandra veio abrir a porta da casa. Estava um pouco pálida, com os olhos muito abertos, e imaginei que o computador devia estar fazendo algo verdadeiramente raro. Em geral, ela entende mais disso do que Eduardo.

        —Estou cada vez mais intrigada — observou-me, sem nem mesmo trocar as costumeiras beijocas falsas.

        —Apita e canta "A máscara negra"? — brinquei. Ela me fitou sem entender nada.

        —Vem, vem.

        O computador de Sandra está instalado em um quartinho onde têm de tudo. Desde um equipamento de som completo, até um teclado eletrônico enorme, cheio de botões que eu nunca saberei para que servem. Num canto, soterrada por livros, uma velha máquina de costura parece um monstro antiduluviano adormecido.

        Puxei uma das cadeiras anatômicas que estavam por ali e sentei-me ao seu lado. O computador estava desligado.

        —Vou fazer toda a operação, para que você entenda bem o que é.

        Acendeu o aparelho. Zumbiu normalmente, a telinha piscou ainda mais normal e eu bocejei. Ela serviu-me um café de uma garrafa térmica que havia ao seu lado. Depois clicou sobre os íconos como sempre se faz e o programa piscou, abrindo o requadro do navegador.

        —Até aqui, tudo bem — ela murmurou, como se estivesse ao comando de um avião do último tipo, cujos flaps, derrepente, deixavam de funcionar. A página de entrada se coloriu com dezenas de barquinhos imbecis que se moviam e me deixavam completamente zonza. Era a página da loja do Chico, claro.

        —Bom, isso é o de sempre. Onde você costuma entrar?

        Consultei o relógio e fiz alguns cálculos. Já devia ser às nove da noite na França.

        — No Louvre.

        Ditei-lhe o endereço (apostava como ela só tinha catálogos de lojas nos seus "favoritos") e esperamos um pouco. Como de costume, o computador se tomou o seu tempo para aceder à tal da página, mas eu perdoava porque o Louvre sempre está engarrafado e eu compreendo bem porquê.

        —É esta? Pois já vê. Normal, normal. Isso funciona como manda o figurino.

        —E qual é o problema?

        —O problema é que outro dia estava procurando alguns endereços da Netcam.

        Pisquei, assumindo meu ar de "sou uma ignorante, e daí?". Ela suspirou, um pouco irritada.

        —Entre outras coisas, as câmaras Netcam são essas que estão instaladas nos saguões de hotéis, nos bancos e lojas. Algumas estão colocadas em diferentes pontos das grandes cidades para que as centrais de tráfego possam ir verificando o fluxo de automóveis.

        Fiz um "ah", entendido e beberiquei o café. Estava muito forte e gelado e eu fiz uma careta.

        —Estive visitando Londres e Paris, na última semana. Tinha saudade.

        Claro. Saudade da lua-de-mel, não me diga mais nada! A cada minuto, minha resolução de por à limpo nossas impertinências juvenis desaparecia com maior velocidade.

        —Então, encontrei isso...

        Foi aos tais "favoritos" e chamou um endereço ilegível. Me pareceu estranho, porque geralmente as letras dos mesmos formam palavras reconhecíveis ou siglas conhecidas, mas dessa vez não era nada parecido.

        A tela piscou e se pôs completamente negra. Bom, pensei, agora vai apagar e reiniciar o programa. Era um vírus. Ou uma brincadeira absurda, do tipo que só os internautas e os informáticos entendiam e achavam graça. Devíamos chamar o Chico imediatamente. Ou marcar hora. Enfim...

        Já estava à ponto de dizer alguma bobagem, quando ela tocou-me a mão. Eu saltei. Estava gelada e trêmula. Inclinou-se ainda mais para o ordenar e sussurrou:

        —Agora, já vem, já vem....

        Então a telinha explodiu em milhares de cores que foram se condensando lentamente em formas extravagantes. Me inclinei sobre o monitor, tentando distinguir alguma coisa. Pouco à pouco, como se estivessem entrando em foco, fui identificando uma casa, um espécie de edifício, uma esquina e algo que, sem ter como chamar, diria que era um semáforo. Parecia um cruzamento.

        —Aí está! — ela gritou no meu ouvido e eu saltei.

        Que mente retorcida haveria concebido semelhante cenário virtual? As paredes das construções pareciam uma catarse de toda a ilógica arquitetônica, sublinhada pela presença aberrante de janelas deformes e negras como poço sem fundo. Diante do que eu acreditava ser a casa, um jardim bizarro exibia uma árvore tão medonhamente torcida e despedaçada, que me causou arrepios. Os galhos terminavam em destroços vivos, mais do que quebrados, estilhaçados, como se uma força sobrentural houvesse sido capaz de arrancar o que fora sua ponta. Pelo "céu" passava uma espécie de rio, um vendaval linear que carregava coisas que pareciam mover-se. Recordava o cenário agressivo de algum jogo cheio de monstros que destroçavam aos jogadores, antes mesmo deles serem capazes de adentrarem-se no labirinto mortal.

        A diferença estava na maneira como se mesclavam as cores e as sombras. Não eram pequenas formas coloridas que compunham um todo, senão cores que se integravam perfeitamente com sombras e matizes, mesclando-se, criando padrões, proporciando uma tridimensionalidade que eu só vira até então em fotografias de boa qualidade.

        —O que estará fazendo? — perguntou-se minha amiga.

        —O que é isso? Que página é essa? — entusiasmei-me.

        —Não sei.

        Olhei para ela com um ar cansado.

        —Olha, Sandra...

        —NÃO TENHO A MÍNIMA IDÉIA! Entrei nesse lugar aí no dia em que estava vendo as netcam. Sempre é diferente. É como se a câmara se movesse.

        —Vamos, Sandra, se sempre é diferente, como é que você sabe que está no endereço correto? — duvidei sem tirar os olhos do cenário. Agora se movia. Deslizava ao longo de uma das coisas que parecia uma rua. Não, não se delizava. Oscilava levemente de um lado para o outro, como se andasse. Era doentio. Me senti enjoada.

        —Marta, você acha que dá para confundir esse... lugar... com algum outro?

        Concordei, hipnotizada pelo movimento cadenciado da câmara.

        —E dá para ver alguém? Para ver como estão vestidos e ter uma idéia...

        Sandra negou com a cabeça.

        —Tudo é sempre deserto. Às vezes passa... bom, uma coisa que parece ser um automóvel, mas nunca se vê nada além disso. Ah, e uma vez vi um... ônibus? Podia ser, não é? Mas não deu para ver se havia alguém dentro.

        —O Eduardo já viu?

        —Ele disse que eu devia sair já. Que devia apagar o endereço e chamar o Chico para ver se não tinha caçado nenhum vírus... mas é que hoje aconteceu uma coisa doida!

        O movimento reíniciou-se. A câmara atravessou a rua e aproximou-se lentamente do prédio que parecia ser todo de vidro. Na parede lisa, um vulto desenhava-se fugazmente.

        —Eu apaguei o endereço, como o Chico disse para fazer e como manda o manual de informações. Mas ele continua lá.

        Olhei-a de soslaio.    

        —E tem mais: hoje recebi uma mensagem muito... muito curta.

        Ela riu, estrangulada pelo medo. Clicou o mouse e apareceu o requadro normal da Internet. Depois foi ao "correio" e abriu a janela. Observei, fascinada, como o movimento da imagem que estava por baixo levava o vulto mais perto da parede de aparência decadênte que o refletia de forma cada vez mais clara.

        —Aqui está!

        Desviei o olhar por um instante. Me bastou isso para abarcar a mensagem.

        "Eu sei que você está aí"

        Não havia nem endereço, nem assunto. Nada. Só as palavras negras sobre o fundo branco.

        Arrebatei o mouse das mãos de Sandra e cliquei outra vez sobre a janela principal, que voltou a tomar o écran.

        O vulto estava parado diante da parede refletora. Aproximou o que era a câmara e vimos, vimos, então, o que era.

        Era um olho. Um enorme e demoníaco olho de pupila estrelada e íris amarela, que se fitava a si mesmo e nos mostrava a si, e nos fitava através da tela do computador, pavoroso, cheio de insânia e maldade! Repleto de luxúria brutal e ódio. E fome.

        Bati no botão de arranque, justo no momento em que os alto falantes começaram a despejar algo horrível, algo que se parecia com as palavras humanas, mas irreproduzível, imemorável, tão antigo quanto o próprio Cosmos. Sandra gritou e empurrou a cadeira até tocar a parede atrás dela, e então começou a berrar cada vez mais alto. A tela piscou um instante e então se tingiu do cinza apagado e benfazejo dos computadores adormecidos.

        Às vezes me pego olhando para o computador em nosso quarto de estudos, incapaz de mover-me. Já não o uso para nada. Voltei ao velho correio normal.

        Tenho tentado analisar o que vimos e encontrar uma explicação racional. Quase sempre consigo. Mas quando desperto pela noite, com os olhos esgazeados buscando a escuridão do meu quarto, sei que o pesadelo está somente começando. As palavras seguem ecoando em minha memória e cada vez suporto menos a lembrança delas.

        "Posso vêr vocês."

        "Sei que estão aí!"

        "Eu sei."