OH LORD, WON'T YOU BUY ME

 

        Eu tinha ido passar uns dias no Rio de Janeiro e estava voltando para Porto Alegre, onde morava, quando de repente resolvi passar dois dias em São Paulo. Nunca fui muito chegado a viagens. Aos quarenta e cinco anos eu não tinha família, e ganhava a vida como técnico free-lancer em eletrônica, fazendo consertos de rádio e TV. Morava num quarto-e-sala cheio de engenhocas, peças, aparelhos esquartejados, mas com espaço bastante para meus três gatos e minha biblioteca de seis mil livros e revistas. A palavra impressa era, para mim, a matéria-prima da Realidade; especialmente a ficção científica, que eu absorvia como uma tecla Delete absorve texto. Eu tinha a mania dos devaneios, mania de pegar uma caderneta e começar a fazer listas: Quantos livros eu tenho onde o herói tem um Döppelganger ? Quantos livros que foram publicados postumamente, ou sob pseudônimo? Quantos livros sobre paradoxos temporais, sobre quartos fechados, sobre casas mal-assombradas? As vezes eu lia o dia inteiro, mas em épocas de muito trabalho eu me limitava a sentar no sofá, reler os títulos nas lombadas dos livros e deixar minha mente vaguear. Louco? Não. Ninguém é louco. O que as pessoas chamam de loucura é apenas o nosso comércio com o Absoluto.

        Era minha primeira ida a São Paulo e eu planejava uma blitzkrieg pelos sebos na área da Praça da Sé, e depois, caso restasse algum dinheiro, tomar umas cervejas com um amigo ou ir ver um show de música num bar qualquer. Eu levava comigo duas malas já cheias de revistas e livros, e um pacote com LPs de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro que eu acabara de comprar de um cara do Rio, que estava juntando dinheiro para editar uma coletânea de histórias de robôs.

        Seis horas dentro do ônibus me deixaram exausto, e quanto peguei o metrô no Terminal do Tietê minhas costas doíam, minha boca estava seca, e meu nariz escorria sem parar devido a minha rinite crônica (sou alérgico a poeira). Entrei no trem arquejando, cambaleando ao peso das malas, e esbarrei num homem de capote que tentava chegar antes de mim a um assento vazio. O trem se pôs em movimento e outro homem perdeu o equilíbrio e deu um passo para trás, pisando nos meus tênis imaculadamente brancos. Soltei uma praga por entre os dentes; o meu pacote de discos escorregou de baixo do meu braço e caiu no colo de uma mulher negra que repetiu o mesmo palavrão que eu acabara de dizer, só que em voz muito mais alta. Soltei uma das malas no chão e agarrei o pacote, mas nesse instante o trem diminuiu a velocidade; foi minha vez de perder o equilíbrio, e meu cotovelo bateu na cabeça de um homem no banco da frente, derrubando seus óculos.

        Houve risos, e algumas pessoas soltaram grunhidos de desagrado. Tentei limpar a coriza na manga do meu casaco de couro negro, peguei o pacote... e nesse instante um rapaz apareceu como se surgisse do nada, arrastou minhas duas malas na direção de um banco duplo que acabava de ser desocupado, e me ajudou a sentar. Depois sentou ao lado.

        -- Obrigado -- falei, puxando um kleenex.

        -- Não foi nada -- disse ele. Teria uns trinta anos; era branco, um tipo magro, com cabelo e bigode castanhos. Vestia jeans, e uma camiseta de malha preta com um desenho de John Lennon e a frase The dream is (Starting) over . Simpatizei com ele no ato.

        -- Chegando de viagem? -- perguntou ele.

        -- Sim. Do Rio.

        -- Hum. Legal.

        -- Obrigado pela ajuda. Detesto viajar com bagagem mais pesada do que eu. -- Isso tinha a intenção de ser uma piada, uma vez que eu tenho um metro e oitenta e peso cento e doze quilos.

        -- Então não viaje -- disse ele, com uma certa lógica.

        -- Não consigo evitar. Fiz umas compras.

        -- Umas compras? A impressão que dá é que você está se mudando para São Paulo e trouxe os tijolos para construir uma casa.

        -- Que nada. São só uns livros.

        -- É mesmo? Eu gosto muito de ler. Você lê o que?

        -- Tudo. Literatura, romance policial, ficção científica...

        -- Interessante -- disse ele, balançando a cabeça e olhando para as malas. -- Para falar a verdade, eu também gosto de ficção científica.

        Quarenta e cinco anos de solidão me ensinaram a não levar esse tipo de declaração muito a sério. Quando eu digo FC eu quero dizer FC, mas a maioria das pessoas parece imaginar que FC inclui gente como Erich von Daniken ou Aldous Huxley ou Robin Cook. Mas antes que eu pudesse explorar melhor o assunto, ele prosseguiu:

        -- Para onde está indo?

        -- Bem... -- Remexi nos bolsos e puxei um pedaço de papel cheio de rabiscos que eu vinha relendo desde a véspera. -- Vou ficar na casa de um amigo, em Pinheiros. Me disseram para pegar o metrô até a Estação Paraíso, e lá pegar um ônibus que passe na Rebouças. Desço perto da rua Henrique Schaumann, e depois tenho que andar um pouco, talvez uns dois quarteirões.

        -- Com essa bagagem toda?

        -- Não posso pagar um táxi daqui até lá.

        -- Estou falando depois que sair do metrô. Não deve ser muito caro.

        -- Sim, mas com esse dinheiro eu posso comprar mais um livro.

        -- Bem -- disse ele -- talvez eu possa ajudar.

        -- Como?

        -- Posso ir com você. Ajudo a carregar sua bagagem.

        Sirenes e luzes de alarme entraram em ação na minha cabeça. Quem era aquele sujeito? Por que estava sendo tão simpático, tão atencioso? Apalpei disfarçadamente o bolso do casaco, e me certifiquei de que minha carteira continuava no lugar. Um ladrão? Voltei a examiná-lo dos pés à cabeça. Não. Não parecia alguém capaz de me nocautear com uma chave inglesa e sair correndo com meus pockets . Também não parecia um daqueles homossexuais que abordam as pessoas em lugares públicos. Não gosto de homossexuais. Não que eu seja um cara preconceituoso, longe disso, mas eles sempre olham para mim com uma espécie de ironia dissimulada, como quem está achando que eu também sou homossexual.

        -- Não se preocupe -- disse ele. -- Só quero ajudar.

        -- Obrigado. Mas eu posso me arrumar sozinho.

        Amassei o kleenex entre os dedos, num gesto que supostamente pretendia revelar minha firmeza e determinação. Olhei em redor e não vi nenhum lugar onde jogar a bolinha de papel.

        -- Me dê isso aqui -- disse ele. Antes que eu pudesse esboçar um gesto, ele tirou a bolinha da minha mão e, bem, ela desapareceu.

        Não estou dizendo que ele fêz algum tipo de truque de mágica, ou que a escondeu na manga.. Ele simplesmente segurou a bolinha de papel na ponta dos dedos, e ela foi diminuindo rapidamente de tamanho, até ficar do tamanho de uma ervilha, de um grão de areia... e sumir. Ele esfregou as pontas dos dedos, como se tivesse acabado de tocar num livro empoeirado.

        -- O que diabo é isso? -- perguntei.

        -- Vim ajudar você -- disse ele. -- Não está vendo?

        Não, eu não estava vendo. Quem era aquele cara? Um trapaceiro? Um vigarista com truques de prestidigitador?

        -- Quem é você? -- perguntei.

        Ele bocejou, e esticou o corpo inteiro, os braços, as pernas. Observei que ele estava usando a mesma marca de tênis que eu, só que os dele eram azuis; e que não usava meias.

        -- Quer a verdade, ou uma mentira de conveniência? -- disse ele.

        -- Uma mentira de conveniência.

        -- Sou um estudante de Física da USP. Meu nome é Luís Alberto de Oliveira, tenho trinta e um anos e ainda moro com meus pais. Detesto trabalhar, e minha intenção é ser estudante a vida inteira.

        -- OK. E a verdade, qual é?

        -- A verdade é que eu sou Deus.

         Oh my God , pensei de imediato. Olhei em redor. Às vezes eu penso que todo vagão de metrô nas grandes cidades devia ter dois enfermeiros de plantão, trazendo camisas-de-força e clorofórmio.

        -- Não tenha medo -- disse ele. -- Sei que soa meio estranho, mas a verdade é que eu sou uma encarnação de Deus Todo Poderoso. Estou aqui para salvar o Universo e, enquanto isto, ajudar pessoas com pequenos problemas da vida cotidiana. Tipo encontrar um táxi num dia de chuva. Ou, a propósito... curar uma rinite.

        E o diabo que me carregue, porque naquele mesmo instante meu nariz parou de gotejar, parou de arder, parou de coçar, e eu respirei num hausto largo e generoso, algo que não experimentava há anos. A overdose de oxigênio me deixou meio tonto, e eu ergui as mãos, amparando a testa.

        -- Como se sente? -- perguntou ele com simpatia.

        -- Eu enlouqueci -- murmurei. -- Meu Deus, acabei enlouquecendo mesmo. Bem feito. Todo mundo me disse para ficar longe de São Paulo.

        -- Deixe-me explicar numa linguagem que você entenda -- disse ele. Ergueu a perna esquerda, pôs o calcanhar em cima do banco e entrelaçou os dedos em redor do tornozelo, num gesto descontraído, coloquial. -- Deus, na verdade, é um servo-mecanismo que equilibra as coisas de modo a permitir que o Universo continue funcionando. É um aparelho homeostático, e funciona em diferentes níveis, supervisionando fenômenos que vão desde os deslocamentos da Grande Muralha de Galáxias até as cambalhotas dos quarks . A vida humana está situada numa espécie de Terra-de-Ninguém entre esses dois extremos, mas desde que ela faz parte do Universo acaba tendo a mesma importância, quando se trata de manter intacta a tessitura do Real. Está me acompanhando?

        -- Não -- respondi. -- Eu vou descer na Estação Paraíso, e você não vai me acompanhar.

        -- Ora, que é isso -- disse ele. -- Deixe-me ser mais objetivo. O Universo é um todo, e cada parte que o compõe tem a mesma importância, em última análise. Imagine uma piscina, certo? Você enfia nela um caneco e retira um pouco de água; e imediatamente toda a água restante muda de posição, se adapta para preencher aquela minúscula lacuna. Bem, o Universo procede da mesma forma. Ele se modifica e se adapta sem cessar, para preencher as bolhas de vácuo-probabilístico que são criadas no seu interior. É desse modo que o Universo atua para preservar a Realidade. Assim, o destino de uma galáxia inteira, de um ser humano ou de um simples elétron são igualmente importantes aos olhos de Deus. Para citar Sherlock Holmes, nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos.

        Não falei nada. Fiquei olhando pela janela e tentando manter a calma. Eles não são perigosos, pensei. São os vampiros solitários das Grandes Cidades, e tudo que eles pedem é uma pessoa amiga que escute seu delírio por meia hora, não mais. Pobres diabos. Não são violentos, não trazem navalhas escondidas no tênis; pelo menos espero que não. Eles pegam no pé da gente por alguns minutos, sugam um pouco do nosso precioso tempo, e depois somem. Nada de pânico. Basta ficar calado, e daqui a pouco ele se levanta e vai embora.

        Aí o trem parou na Estação Sé, e um grupo entrou no vagão. Vestiam roupas de couro negro, com pulseiras e cintos cheios de pontas de metal, e davam a impressão de uma gang de cenobitas que acabavam de fugir do filme Hellraiser para ir ver um show do Judas Priest. Um deles, um sujeito louro de cabelos longos e queixo de estátua da Ilha da Páscoa, cravou os olhos em mim. Resolvi deixar claro que não estava sozinho, e virei-me para o doido, em busca de apoio moral.

        -- Ser Deus deve dar um trabalhão -- comentei, jovial.

        -- Nem tanto -- disse ele, despreocupado. -- Claro que eu sou apenas uma das minhas manifestações. Sou uma rede com bilhões de terminais, e o que você está vendo é apenas um deles, configurado de acordo com suas expectativas. Se você fosse cristão, estaria vendo um anjo, com asas e tudo.

        Perguntei de súbito:

        -- Quem vai ganhar o jogo de hoje à noite... Corinthians ou Guarani?

        Ele soltou uma gargalhada, batendo com o pé direito no chão e atraindo a atenção dos metaleiros. Um deles, um sujeito troncudo com cabelos encaracolados e oleosos, cuspiu no chão. Usava uma T-shirt preta onde estava escrito em letras góticas: THE DEAD MUST DIE , e quando endireitou o corpo, seus seios retesaram o tecido. Deus que me guarde... aquilo era uma mulher .

        -- Deixe de bobagem -- respondeu meu companheiro. -- Estou aqui para tratar de coisas importantes. Ou você pensa que eu não faço outra coisa senão coçar o saco o dia inteiro e distribuir resultados da Sena e zebras do Jóquei? Escute... estou aqui para lhe dar uma chance. Peça alguma coisa, e eu lhe darei. A única condição é que seja algo que você seria capaz de qualquer coisa para conseguir. Está me acompanhando?

        Claro que eu estava. Faltava apenas uma estação para o lugar onde eu devia descer, e isso queria dizer que dentro de uns dois minutos eu teria que me levantar, sobraçar minhas toneladas de livros, abrir caminho por entre os metaleiros, licença cavalheiro... e escapar com vida.

        Em momentos assim, um homem tem que ser cínico. Eu ia ter que me aproveitar do pobre diabo para me facilitar as coisas. Primeiro, ele podia me ajudar com as malas; e depois, se a situação ficasse fora de controle, eu podia sair correndo e deixá-lo para trás funcionando como isca, boi-de-piranha, carne-de-canhão, bode-expiatório.

        -- Olhe aqui -- falei. -- Vou ter que descer do trem na próxima estação. Por que não vem junto? A gente podia parar em algum lugar, tomar um refrigerante e continuar batendo papo.

        -- Claro -- disse ele. -- Porque neste instante, caso você não saiba, você é uma das pessoas mais importantes do Universo.

        -- Verdade? -- Eu não estava impressionado. Sempre parto do princípio de que eu sou a única pessoa importante do Universo.

        -- Sei que não está acreditando em nada do que eu disse, mas o fato é que você é um Penitente -- completou ele.

        -- E o que diabo é um Penitente?

        -- Um Penitente é alguém que não consegue produzir Realidade e, em vez disso, atua sobre ela como um aspirador-de-pó. Veja bem... as pessoas evitam você sempre que podem, certo? Quando você se aproxima de um grupo de conhecidos o ritmo da conversa cai bruscamente e eles começam a olhar o relógio e lembrar que têm um compromisso, certo? Quando você entra num bar e vê um casal conhecido você vai direto para a mesa deles, puxa uma cadeira, pede um chope, e fala sem parar até que o cara e a garota começam a odiar um ao outro, certo? Você aborda um escritor famoso numa ocasião social e dentro de dez minutos ele olha em redor como se seu cérebro estivesse afundando em areia movediça, certo? Quando você encontra uma pessoa que lhe dá um pouco mais de atenção, você começa a contar a história de sua vida desde a primeira vez em que sua mãe descobriu e rasgou as fotos pornográficas que você escondia no livro de álgebra, certo? Quando você vai a uma festa você é o primeiro a chegar, quando os donos da casa ainda estão se barbeando e tomando banho, e é sempre o último a sair, quando eles estão bocejando, esvaziando cinzeiros, enfileirando garrafas vazias junto à parede da área de serviço, e fazendo comentários em voz alta sobre alguma coisa que têm que fazer logo mais às sete da manhã, enquanto você os segue pela casa afora, explicando em detalhes as inconsistências do enredo de Um Estranho numa Terra Estranha , certo? Você quase causou o suicídio da única namorada que já teve na vida, só porque ela estava tão desesperada para arranjar um marido que cedia a qualquer capricho seu, até mesmo entrar para uma Fraternidade Cthulhu e começar a ter pesadelos onde era estuprada por homens-anfíbios estranhamente parecidos com aquele baiano traficante de fumo que tinha uma cópia da chave do seu apartamento e lhe pedia dinheiro emprestado toda sexta-feira à noite, certo? Você...

        -- Vá foder com o cú -- falei. -- Chega.

        O trem parou, e eu estava tão furioso que fiquei de pé e ergui as duas malas como se elas estivessem cheias de bolinhas de isopor. Rompi como um búfalo ferido através do grupo de metaleiros, catapultando-os em todas as direções como se fossem pinos de boliche; o idiota me acompanhou, quase pisando em meus calcanhares; trazia meu pacote de discos abraçado ao peito feito uma colegial, a bicha louca.

        Subi as escadas de dois em dois degraus e abri claros na multidão até emergir numa calçada onde um monte de gente se acotovelava para subir em ônibus repletos. O trânsito estava engarrafado, e o ar era quente e úmido. Deixei cair no chão as malas e puxei um punhado de lenços de papel, ensopando-os em minha testa.

        -- Desculpe -- disse o cara. -- É sempre a mesma coisa. As pessoas não acreditam, aí eu tenho que mostrar que é verdade.

        -- Vá chupar seu pau, filho da puta -- rosnei, enquanto remexia nos bolsos, onde devia estar o tal pedaço de papel todo rabiscado com instruções e endereços que, por uma razão freudiana qualquer, eu era incapaz de decorar.

        -- Você é um Penitente -- insistiu ele. -- Uma sanguessuga sedenta que jamais pode ser saciada pelo leite da bondade humana. Em breve você vai se tornar uma ameaça ao equilíbrio do psi-continuum deste planeta. Estou aqui para lhe dar conforto, alívio, antes que você drene por completo o fluxo de emoções da Terra inteira, que está muito instável nos últimos séculos.

        -- OK, OK, OK, OK, OK.

        Meu maior defeito ao lidar com outras pessoas é que não consigo sustentar por muito tempo nenhum tipo de disputa. Sempre sou o primeiro a entregar os pontos. Não tenho paciência para lidar com esse tipo de gente. Eu não gosto de gente. Gosto de meus livros.

        Respirei fundo.

        -- OK. O quê que você quer?

        -- Mas é esta a pergunta que eu estou lhe fazendo o tempo todo -- disse ele, sem um pingo de lógica. -- Peça alguma coisa que você deseja intensamente. Uma das minhas funções é cuidar para que os desejos da Humanidade sejam satisfeitos. Faço isso o tempo inteiro, antes que se torne um caso grave.

        "Pense naquela mulher de uma tribo na Somália, rangendo os dentes de desespero, olhando o céu em busca de uma nuvem. Pense no garoto de dez anos em Buenos Aires, parado diante da vitrine da loja e olhando a bicicleta vermelha que o pai desempregado lhe prometeu há dois anos. Pense no septuagenário em Zurique, deitado na cama à noite, olhando o corpo da esposa adormecida, e desejando poder trocar um mês do seu futuro por um dia do seu passado. Pense no jovem advogado em Milão, dando tudo de si para derrotar na corte um promotor que é ao mesmo tempo seu maior amigo e concorrente...

        "E o jovem jogador de xadrez numa cidadezinha da Austrália, queimando os olhos em noites insones diante do tabuleiro, sabendo que tornar-se um dia um Grande Mestre é sua única chance de escapar a uma vida de trabalho duro e brutalidade. E a tiete de rock no Novo México, de olhos largos e pernas curtas, que viaja cem milhas de carona para poder dormir enroscada sobre si mesma nos degraus de um estúdio de gravação, esperando ver seu ídolo. E o motorista de caminhão no interior da Bahia, corpulento, barba por fazer, que se queima em desejo pela garçonete loura da lanchonete, e iria até o estupro ou o casamento, só para poder provar do seu corpo...

        "Todas essas pessoas, e você também, são Penitentes, são estrelas vermelhas gigantes à beira do colapso, e a qualquer instante podem produzir um rasgão no Real. Um desejo demasiado forte, quando não satisfeito, é perigoso para o psi-continuum. Eu sou responsável pela manutenção desse equilíbrio, e preciso trabalhar muito para otimizar o fluxo de emoções sem mudar a ordem natural das coisas. E estou aqui para apaziguar você. Tome... pegue isto aqui.

        Ele me estendia algo, e não era mais o meu pacote de discos; era uma sacola plástica, com uma ilustração em preto e branco que mostrava um homem miudinho lendo livros enormes diante de um casarão velho e distorcido, e tendo escrito embaixo: Curious Book Shop .

        -- Tome -- repetiu ele.

        Tomei a sacola de sua mão. Estava cheia de livros. Senti aquela mistura peculiar de euforia e expectativa que faz meu coração bater mais forte toda vez que chego em casa e abro o pacote de livros que acabei de comprar. Segurei a sacola com uma mão, e com a outra retirei o primeiro livro.

        Era um livro não muito grosso, de capa reluzente: Dancing in the Fire , de Ernest Hemingway. Peguei outro; era um pocket-book , também em inglês: The Empty Table , de Dashiell Hammett. O terceiro era em português, e enorme: Grande Sertão: Cidades . O autor: João Guimarães Rosa.

        A esta altura eu já estava respirando depressa, e meu coração parecia que ia saltar do peito. Ajoelhei-me no chão e fui empilhando os livros uns sobre os outros, à medida que os retirava. Surgiu outro pocket ... Not Just a Burning Hologram , de Philip K. Dick. Uma volume capa-dura, amarelado pelo tempo... Poèmes d'Afrique , de Arthur Rimbaud; uma edição da Mercure de France, 1904... Mais dois livros de bolso: And Then the Stars Went Mad , de Henry Kuttner; e El Misterio del Escudo Sajón y Otros Relatos , de Jorge Luís Borges.

        Abri as páginas ao acaso, lendo sem entender, sem acreditar.

        -- Eu poderia ter conseguido um número imenso de livros comuns -- a voz estava dizendo -- mas imaginei que qualidade e raridade seriam mais úteis para obter a resposta que desejo.

        Ergui o rosto. Não vi A Face Que Pairava Sobre O Abismo. Vi um rapaz jovem parado à minha frente, com as mãos nos bolsos, vestindo uma camisa de John Lennon. Minha boca estava seca, e quando falei quase não reconheci minha voz, de tão rouca.

        -- Quer dizer que meu desejo por essas coisas é tão forte que pode desequilibrar o Universo?

        -- Mais ou menos -- concordou ele. -- Claro que não se trata de você, apenas. Mas a proliferação desse tipo de idée fixe tende a engarrafar o trânsito das probabilidades, por assim dizer.

        Baixei os olhos, e fitei a ilustração estranha, perturbadora, estampada na capa de O Navio Desaparecido , de Franz Kafka. Retirei mais um: The Last Sane Men , de John Wyndham. E depois Beyond These Ancient Gates , de Lovecraft. Outro volume maciço, Bride of Leviathan , de Theodore Sturgeon. E depois I Have Passed This Way Before , de Nelson Bond.

        -- Obrigado -- sussurrei. -- Obrigado. Obrigado.

        E, como se alguma coisa dentro de mim estivesse somente esperando por esse sinal, uma torrente quase insuportável de felicidade me inundou a alma inteira, o corpo inteiro. Fechei os olhos, e o Universo pareceu naquele instante, pela primeira vez desde que eu me apercebera de sua existência, um lugar hospitaleiro, um refúgio benigno.

        Ergui a cabeça e voltei a encarar o rapaz, mas desta vez notei que algo tinha mudado em sua aparência. Não sei descrever o que era, mas a imagem dele parecia estar tremulando, como se entre nós dois houvesse uma camada de ar quente. Depois isto cessou, e ele estava ali novamente.

        -- Acabou -- disse ele. -- Obrigado.

        E os livros desapareceram. Sumiram. Evaporaram.

        Fiquei de pé, ainda segurando na mão o último deles.

        -- Quê que está havendo? -- perguntei.

        -- Já houve -- foi a resposta dele. -- Mas você me deu uma descarga de emoção positiva muitíssimo mais forte do que eu precisava, e agora tenho que produzir uma descarga negativa para equilibrar tudo outra vez. Acho que vou fazer com que algum dissidente político seja preso e torturado na Africa do Sul.

        -- Não estou lhe acompanhando -- disse eu.

        -- E não vai -- disse ele, e sumiu no ar.

        Olhei em redor, e era como se eu tivesse acabado de bater uma porta e desse pela falta das chaves. Pessoas passavam por mim sem me olhar, como extras num filme. Uma sensação de pavor travou minha garganta.

        Olhei para o livro que ainda segurava: era Bring me Dust from Earth , de James Blish. Abri-o devagar, folheei suas páginas. Comecei a ler uma frase, mas antes que pudesse entender o que diziam as palavras as letras começaram a tremular sobre o papel e soltaram-se, foram deslizando página abaixo, descendo, descendo, até que atingiram a borda da página e começaram a pingar, como gotas de tinta negra, sobre os meus tênis brancos.