A um povo de mortalha

"Auriverde pendão de minha terra

Que a brisa do Brasil beija e balança

Estandarte que a luz do sol encerra,

E as promessas divinas de esperança...

Tu, que da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!"

Castro Alves, "O Navio Negreiro"

 

I. O Homem

 

        Em uma de minhas visões, a bandeira está rasgada, e queima nas bordas, e tinge-se de sangue; nesta visão, ninguém mais ousa sequer murmurar o hino... o mesmo hino que meus pais e avós cantaram tantas vezes, no final de tantas ditaduras, a música que inspirou exércitos e derrubou presidentes.

Na visão, os fantasmas que hoje se movem apenas na tela holográfica dos computadores da plataforma, pontos de luz que extrapolam, em três dimensões, os fósseis que encontramos na falha - seres de milhões de anos atrás, espécimes chamados de "ciclomedusas", ou "pteridínios", ou "dickensonianos" - existem fisicamente , e multiplicam-se, e enchem os mares com sua massa informe, e se unem e, uma vez unidos, obtêm consciência . E o poder de seus pensamentos me atinge como um golpe, um soco no peito, arrancando-me do mundo da visão, arremessando-me de volta à realidade.

        Percebo que, mais uma vez, adormeci sobre o terminal.

        Também noto, sem saber exatamente como, que o Homem Obscuro esteve aqui, nesta sala. Sem saber como, tomo consciência de que ele esteve junto à soleira da porta, e apenas olhou para mim, e sorriu com a luz fria do vestíbulo às suas costas, o rosto assumindo aquela expressão composta de um tanto de piedade e de um outro tanto de escárnio. Depois foi-se. É ele, estou certo, que me causa as visões. Não por telepatia, mas algo diferente. Mais antigo.

        Insidioso.

        Nós da estação de pesquisas o chamamos de Homem Obscuro, mas seu nome é Pierre Dunkelhügel. Ele veio à Antártida como observador indicado pelos acionistas suíços do consórcio e, até onde nossa equipe de segurança pode dizer, seus papéis estão suficientemente em ordem. Chamá-lo de "Obscuro" é uma mistura de trocadilho com seu sobrenome, que contém a palavra "dunkel" - "escuro", em alemão - e piada de mau gosto: ele sofre de uma variedade rara, desagradável de se contemplar, mas aparentemente não muito debilitante, de albinismo.

A alcunha surgiu entre o pessoal menos graduado, os técnicos e guardas que, com certeza, têm um apelido secreto para cada um de nós, os "cabeções", cientistas. E, assim como os outros apelidos, este também teria ficado restrito às equipes de serviço, não tivesse o termo "obscuro" se mostrado tão adequado.

Desde que chegou à estação, Dunkelhügel sempre pareceu preferir os pontos menos iluminados, as sombras e áreas de penumbra, o catre mais distante da vigia, a cadeira sob a lâmpada queimada. Essa peculiaridade foi logo atribuída ao albinismo, e não teria sido suficiente para consolidar o apelido, mas havia algo além. Como uma certa disposição mórbida do caráter, alternando longos lapsos de silêncio pensativo com rápidas tiradas de um humor sardônico, quase cruel.

Foi essa crueldade, creio - sugerida, jamais realmente expressa, mas, de alguma forma, sempre presente - que fez com que todos, e não apenas os soldados russos e técnicos americanos, passássemos a ver Dunkelhügel como o Homem Obscuro.

II. O Testemunho

        É difícil explicar a amplitude dos eventos em que estou envolvido - ou, ao menos, dos eventos em que, sugerem as visões, estarei envolvido. Depois de tudo que me aconteceu nas últimas semanas (desde a chegada de Dunkelhügel, na verdade) comecei a entreter a noção de que, assim como há cores muito altas, ou baixas, para a visão humana, também deve haver fatos, conceitos e realidades que escapam ao espectro não apenas dos olhos, mas de todo o conjunto da mente - para aqueles que crêem, da alma - dos de nossa espécie. Se nossos olhos são canhestros, por que não a totalidade de nossos cérebros? Um pedagogo certa vez me disse que crianças abaixo de determinada idade são incapazes de compreender conceitos matemáticos abstratos, como o número zero. Que abstrações, então, não escapam à mente adulta?

        Essas especulações surgem sempre que, simulando a atitude mental de uma hipotética terceira pessoa - uma pessoa fria, neutra e racional - tento analisar o que vem se passando. Tudo que essa terceira pessoa pode fazer, no entanto, é dar de ombros e sorrir um sorriso impotente... ao mesmo tempo em que reprime um calafrio, vindo não se sabe de onde e causado não se sabe por quê.

        Da mesma forma que as cores de fora do espectro visível podem cegar, inutilizando nervo e retina, talvez também as realidades externas ao espectro da mente sejam nocivas - deixando cicatrizes naqueles que insistem em persegui-las, ou mesmo incinerando totalmente a frágil membrana da razão. De qualquer maneira, devo tentar. Se o destino é, realmente, aquele que antevejo, será necessário deixar um testemunho. Foi o que me propus a fazer assim que acordei nesta sala, com a certeza de que o Homem Obscuro estivera me observar. É o que farei agora.

         

III. A Falha

        Começando pelo início: estamos (eu e mais noventa e sete pessoas) na Estação Internacional de Pesquisa de Vida Extremófila Salvador Allende , uma plataforma artificial construída sobre um bolsão de águas relativamente quentes do Oceano Antártico. Estamos fora de águas territoriais chilenas, mas como a região de Punta Arenas foi de grande importância logística para a construção da estrutura, o consórcio deu a Santiago o direito de escolher o nome deste lugar. Já a tecnologia envolvida foi, quase toda, adaptada de técnicas brasileiras para a extração de petróleo em águas profundas.

        O objetivo da Allende é estudar uma falha geológica aberta no leito do oceano, ao que tudo indica pelo mesmo encadeamento de convulsões tectônicas que abalou os Andes e destruiu as milenares esculturas da Rapa-Nui, a Ilha da Páscoa. Por essa falha emanam quantidades nada desprezíveis de energia geotérmica, o que explica o bolsão de água relativamente quente.

        A falha é estudada sob os mais diversos aspectos - desde seu comportamento sismológico até os possíveis efeitos do aquecimento das águas sobre o clima global - mas a principal ênfase do projeto, a linha de pesquisa que o consórcio está realmente financiando, é bem diferente: eu e meus colegas estamos envolvidos no estudo de seres alienígenas.

        Não que alguém aqui acredite que haja um disco voador lá embaixo. Como o próprio nome da estação diz, viemos aqui procurar por vida extremófila . Esse termo, criado no final do século passado, descreve seres que proliferam em situações extremas, ambientes onde o bom senso diria que até mesmo as reações químicas mais básicas para o surgimento e manutenção da vida seriam inviáveis.

Além dos extremófilos, também buscamos por espécimes arqueanos : representantes dos seres que existiam antes da chamada Explosão Cambriana, ocorrida há cerca de 600 milhões de anos. Existe uma ligação entre as duas categorias. Praticamente todos os extremófilos atuais são, na verdade, arqueanos sobreviventes.

Tanto o registro fóssil quanto os extremófilos vivos mostram que antes da grande mudança do Período Cambriano - quando, subitamente, surgiram todos os tipos de animais hoje existentes - a Terra era habitada por seres que, para além da constituição química mais elementar, nada têm a ver com a vida como a compreendemos. Uma criatura como a ciclomedusa, por exemplo, é tão diferente de um homem e de uma árvore quanto o homem e a árvore são diferentes entre si.

Até a década de 90 do século passado, os fósseis de criaturas pré-cambrianas e as bactérias extremófilas eram vistos como meras curiosidades, algo como as chuvas de sapos e sangue estudadas por Charles Fort; no entanto, a exploração do Sistema Solar e a busca por vida em lugares como Marte ou Europa - a lua de Júpiter para onde deve estar partindo uma missão tripulada nos próximos meses - mudou o cenário.

Afinal, se iríamos procurar por vida extremófila lá fora (até onde sabemos, esse é o único tipo de vida que pode haver em outros astros), talvez fosse melhor darmos uma olhada, antes, no que a Terra tem a oferecer.

Esse ponto de vista ganhou consistência com a descoberta de um meteoro aqui perto, na Antártida. Havia marcas no tal meteoro, marcas que poderiam ser bolhas de gás ou fósseis alienígenas microscópicos. Incapazes de chegar a uma conclusão, os cientistas da época acharam que seria melhor estudar os fósseis microscópicos conhecidos antes que se concluísse algo sobre rochas de outros planetas. Assim surgiu o Centro de Astrobiologia da NASA; quando essa estatal foi absorvida pelo consórcio, o nome do centro mudou para Departamento de Biologia de Ambientes Hostis.

Os cientistas do departamento estudam as bactérias que vivem em locais como velhos reatores de fissão nuclear, soluções salinas, ácidas ou alcalinas altamente saturadas, gêiseres, crateras vulcânicas ou outras fontes geotérmicas; os liquens que prosperam, microscópicos, nos Vales Secos da Antártida, a mais marciana das paisagens terrestres; ou as formas protoplásmicas que se reproduzem nas mais profundas fossas oceânicas.

Os pesquisadores também buscam por fósseis de edicaranos, criaturas pluricelulares que não são nem vegetais e nem animais, nem mesmo fungos, e que foram varridas da face da Terra pelo surgimento das novas espécies que vieram com a Explosão Cambriana. Os primeiros edicaranos foram descobertos na Austrália. Mais tarde, a Antártida também provou ser um generoso celeiro desse tipo de registro. Então, quando a falha se abriu - tão perto do continente gelado, e com uma fonte geotérmica de grande profundidade - a oportunidade de estudo pareceu boa demais para o consórcio deixar passar. Menos de um ano depois da destruição da Ilha da Páscoa, a Estação estava pronta e operante.

IV. Símbolos

        Reli com atenção o que escrevi acima. É curioso como, ao tratar dos fatos científicos que me trouxeram a este lugar, começo a sentir um ressurgimento do antigo entusiasmo, e me delicio com o som e as letras de palavras belas e complexas. Sinto um verdadeiro orgulho de artesão ao explicar os termos e métodos de meu ofício. Quase me esqueço dos sonhos, das visões - da figura de Pierre Dunkelhügel. Se pudesse deixar tudo para trás, e mergulhar no trabalho... Mas meu trabalho tornou-se indissociável da coisa . É impossível tratar de um sem sentir a sombra, o peso do outro.

        Eu disse, anteriormente, que Dunkelhügel alterna grandes silêncios com breves tiradas de uma ironia ferina. Mas, claro, ele não se restringe a isso; ninguém poderia. O Homem Obscuro também conversa conosco sobre trabalho, e até mantém, por períodos razoáveis de tempo, alguns diálogos que poderiam ser considerados cordiais. Silêncio e ironia são apenas as duas características mais marcantes de seu discurso - e, sim, o silêncio faz parte do discurso de Dunkelhügel. O silêncio, o olhar, as sombras que parecem fluir ao seu redor, e a palidez mórbida.

        Digo isto para explicar como teve início meu relacionamento com ele: através de uma conversa casual. Alguns dias após sua chegada, quando o apelido de Homem Obscuro ainda circulava, apenas, entre os técnicos de baixo escalão, ele me procurou, durante um de meus períodos de folga.

Dunkelhügel se dirigiu a mim em um português perfeito, não em francês (a língua oficial do consórcio) e nem naquela mistura bastarda de inglês e espanhol que constitui a "língua franca" da estação.

         - Você é brasileiro - ele disse.

         - Sim - respondi, um pouco surpreso. - Esse dado consta de minha ficha, monsieur Dunkel...

         - Nada de "monsieur", por favor - ele disse, sorrindo; e hoje imagino se já não haveria uma semente de escárnio naquele primeiro sorriso, que à época me pareceu tão amigável. - O fato é que tenho alguns interesses que... Mas você aceita um café?

        Fiz que sim com a cabeça, e ambos nos pusemos a caminhar em direção ao restaurante. A temperatura dentro da estação é mantida em um nível que europeus e chilenos considerariam "ameno", mas que, para um brasileiro nascido no Rio, como eu, mostra-se desconfortavelmente frio. Portanto, jamais recuso uma bebida quente.

        Junto ao balcão do restaurante-lanchonete da estação, o Homem Obscuro me explicou seu interesse, seu "hobby": heráldica.

        Aquilo me surpreendeu um pouco. Não pelo tema em si, já que o Renascimento Europeu de 2027 havia colocado muitas tradições e formas de arte do Velho Mundo novamente em evidência, mas pelo fato dele querer discutir o assunto comigo. Afinal, o que eu entendia de heráldica?

         - Já há algum tempo, minhas atenções vêm se desviando dos escudos e símbolos familiares para símbolos nacionais - ele explicou. - Assim como há uma heráldica medieval, das velhas famílias, também existe uma heráldica das nações, que aparece em bandeiras, selos, moedas. E, nesse aspecto, a bandeira brasileira...

         - Ah, sim! - eu disse, rindo um pouco. - "Ordem e progresso", não é mesmo?

        A expressão no rosto de Dunkelhügel me mostrou que eu o deixara intrigado. Expliquei:

         - A bandeira brasileira é a única, das nações ocidentais, a conter um lema, uma frase. Já ouvi, em algum lugar, que se trata de um grave erro heráldico.

         - Oh! - ele também riu, ainda que só para me acompanhar. - Certo, certo. Mas há outros aspectos, mais interessantes, ainda que mais obscuros. Símbolos místicos.

         - Verdade?

         - Com certeza! Claro, todos conhecem a pirâmide onividente do dinheiro americano... Este é, talvez, o caso clássico de fusão entre símbolos nacionais e hierogramas iniciáticos. Já a bandeira brasileira... Você conhece o símbolo da maçonaria?

         - Um compasso e um esquadro, não é?

         - Sim. Mas como estão posicionados?

         - Ora... assim! - E, para mostrar ao que me referia, fiz um "v" com os dedos médio e indicador da mão esquerda, outro com os dedos correspondentes da mão direita, e então encostei um indicador no outro, um dedo médio no outro.

         - E que figura é essa?

         - Um losango, ora.

         - O losango maçônico representa o Grande Arquiteto do Universo, uma metáfora, segundo alguns intérpretes de pouca imaginação, para Deus. É verdade que o compasso e o esquadro formam uma figura mais alta do que larga, enquanto que o losango brasileiro é o contrário disso. Essa discrepância quase me enganou. Mas então eu me concentrei nas cores: um losango amarelo ...

         - O que tem o amarelo?

         - O amarelo representa ouro!

         - Foi o que aprendi nas aulas de Moral e Cívica - respondi, sorrindo.

         - Não, não o metal ! Mas o ouro dos alquimistas, o ouro que seria obtido através da purificação do "chumbo", isto é, da natureza humana: o ouro da alma, a plenitude de espírito humano. Epifania. Imortalidade.

V. O Mergulho

        Eu sabia que os maçons haviam desempenhado um papel importante no processo de independência do Brasil, e que os dois imperadores do século XIX haviam sido membros da Ordem; mas isto, qualquer criança sabe. Eu também tinha a noção de que o losango amarelo havia sido introduzido logo na primeira bandeira imperial, sendo mantido depois, com a chegada da República. Dessa forma, as suposições de Dunkelhügel até que pareciam fazer sentido, ao menos dentro de meu limitado conhecimento histórico (e, admito, de meu completo desconhecimento do ocultismo).

        Até então eu jamais havia levado o conceito de nação, ou de identidade nacional, muito a sério. Meus escritores preferidos eram ingleses, minhas músicas, alemãs; em termos de cozinha, eu não trocaria a japonesa por nenhuma outra. E, não, não jogo futebol. Em resumo, para mim "país" era apenas um obstáculo com o qual eu tinha de lidar para ir do Rio a Sidney, ou Bruxelas. A conversa com Dunkelhügel não me despertou nada além de uma certa dose de interesse acadêmico, portanto. E creio que já estava em vias de esquecê-la por completo, ou pelo menos de relegá-la às camadas de memória mais volátil, quando tive a primeira visão.

        Não foi um sonho. Foi uma visão, algo que aconteceu quando estava acordado. Acordado e sozinho: era meu turno na batisfera.

        Pérez, o engenheiro argentino, diz que chamar o VESGP-B (Veículo de Exploração Submarina de Grande Profundidade - Biociências) de "batisfera" é como chamar um Royce-VW 3001, movido a células de hidrogênio e captação solar, de "carro". Mas o modelo 3001 da Royce-VW ainda tem quatro rodas. Por isso, para mim, ele ainda é um "carro". Da mesma forma, o VESGP-B é redondo e desce da plataforma preso a um cabo. Portanto, é uma batisfera, mesmo sem ter um buraco no fundo. Certo? Ao menos, metaforicamente.

        Mas estou desviando do assunto.

        Toda a equipe científica da estação faz turnos de três horas semanais na batisfera. Eu já havia coberto turnos para outros colegas, uma vez que nem todos se dão muito bem com a necessidade de respirar o gel eletrostático. Eu mesmo tive convulsões dos músculos das costas uma vez, mas foi só.

        Aquele turno, no entanto, era de fato o meu. Como de costume, fui para a câmara isolada, fiquei nu e tomei o banho desinfetante. A câmara é bem aquecida, o que faz do banho preparatório uma experiência bem menos desagradável que os banhos diários em nossos alojamentos.

        Então soltei todo o ar dos pulmões (na verdade, há sempre uma reserva residual; mas imagino que ela não atrapalhe a assimilação do gel) e, com o peito ardendo, abri a escotilha no piso da câmara, mergulhando em seguida no útero do VESGP-B.

        O interior da batisfera lembra uma câmara de privação sensorial, do tipo usado nos asilos psiquiátricos, e creio que o gel - respirável e mantido à temperatura constante de 37 graus - seja também o mesmo, ao menos em princípio. Mas o gel do VESGP-B é eletrostático ; ele reage às informações vindas dos sensores externos da esfera. Dessa forma, as partículas que compõem a substância se reorganizam, reproduzindo as cores e texturas do ambiente externo. Estar na batisfera é, para todos os efeitos, como estar dentro de uma esfera de cristal... não. Na verdade, é até melhor: pois o gel também capta os movimentos de meus braços, pernas e cabeça, e esses movimentos são reproduzidos, em escala, pela rotação das luzes externas e pelas pinças mecânicas do VESGP-B.

Assim, se eu esticar a mão para tocar em um "fóssil" virtual feito de gel coagulado, a manopla da batisfera fará o mesmo com o fóssil verdadeiro; e as impressões sensoriais captadas por bilhões de nanoagulhas de cerâmica e diamante serão repassadas às pontas de meus dedos.

        A maioria das pessoas não gosta de olhar para baixo quando está na batisfera. Isso é compreensível, já que o efeito de perspectiva produzido pelas propriedades óticas do gel é terrivelmente acurado; e é muito fácil para alguém ter vertigens ao olhar diretamente nas profundezas de uma fossa tectônica submarina.

        Não é o meu caso; sempre gostei de vislumbrar o abismo. Por isso é difícil explicar o que causou a visão. Mesmo que tenha sido vertigem... quem já ouviu falar de vertigens causando delírios tão complexos , tão detalhados como os meus?

VI. Visão do passado

        Naquela viagem, o gel eletrostático não me mostrou cavernas submarinas, fósseis, peixes cegos ou moluscos fosforescentes. Nenhuma das visões usuais. Naquela viagem, o ambiente ao meu redor se transformou, subitamente, em... uma biblioteca.

        Esta foi a primeira visão; nela, ainda não havia o menor sinal da tragédia futura. E talvez esta tenha sido uma visão autêntica , um aviso sincero, e não uma das manipulações de Dunkelhügel. Talvez emanações do próprio fosso tenham despertado memórias ocultas em mim, lembranças de uma outra vida, pensamentos gravados nos genes, diluídos pelo sangue. Quem sabe?

        O espaço era uma biblioteca. Enorme. As paredes, recobertas de livros, erguiam-se, ao meu redor, a uma altura invisível, indeterminada. Possivelmente, ao infinito. As estantes e prateleiras eram de uma madeira quase púrpura, que brilhava, refletindo a luz amarelada de velas e cristais ( havia um candelabro, em algum lugar, mesmo que eu não pudesse vê-lo). As encadernações eram de ouro, prata, ferro, couro, madeira, tecido. Havia livros negros, brancos, amarelos, vermelhos. A biblioteca era um caleidoscópio.

        Ao centro, uma mesa. Sobre a mesa, um mapa. Estudando o mapa, quatro homens.

        Havia algo de curioso em tais homens. Seus trajes... eles vestiam casacas longas, com lenços de seda nos punhos, e cada um deles usava uma espécie de laço no pescoço, como algumas pessoas ainda usam gravatas. Era como uma ilustração da França napoleônica, mas havia uma diferença... algo que me tocou, a princípio, como uma nota perturbadora: aqueles eram, com certeza, homens abastados - eles tinham a postura de pessoas ricas - mas não havia adornos em seus trajes. Nenhum botão prateado, nenhuma filigrana dourada ao longo dos punhos ou lapelas, nenhuma fivela nos sapatos. Nenhum destes homens usava anéis ou medalhas.

        Era como se houvesse um acordo, um entendimento tácito, para que todo o esplendor da sala fosse concentrado nos livros; como se apenas aos textos fosse permitida a vaidade de ostentar ouro, prata e jóias.

Por alguma razão, o conceito me agradou.

        Os homens conversavam, debruçados sobre o mapa. Eles estavam perto de mim, ao menos visualmente, mas suas palavras pareciam vir de muito longe, e através de algum tipo de túnel, ou caverna... Eu não ouvia a fala em si, mas apenas um eco distante. Mais do que captar exatamente cada palavra eu, de alguma forma, me vi apreendendo o significado geral de cada frase. São esses significados, abstratos , que tento traduzir aqui, sob a forma de linhas de diálogo:

         - Eles comemoram a "liberdade". "Independência"! Se soubessem... Se o príncipe soubesse... - disse o primeiro a falar.

         - Saber é o nosso fardo. O príncipe, que em breve se fará coroar imperador, não precisa deste conhecimento. E ele nos deu carta branca para cuidar do símbolo, e o fez porque confia em nós - respondeu o segundo.

         - Esta terra será importante, muito importante, quando os selos caírem. - Observou o terceiro. - Por isso temos que trabalhar; por isso atraímos o jovem Pedro ao círculo exotérico da Ordem. Ele nos pediu armas místicas e símbolos, e é isso que lhe daremos. Mas para uma batalha muito mais violenta do que qualquer coisa ao alcance da mente diminuta de nosso novo herói nacional, ou de sua família portuguesa. Quanto tempo até o lacre deixado pelos Mestres Primordiais ruir?

         - Duzentos, trezentos anos, no máximo - respondeu o quarto. - As estátuas cegas do Pacífico não são mais confiáveis. Uma vez destruídas... Não haverá nada para manter a Consciência adormecida. Mas o novo selo deverá impedir que Ela estabeleça contato com outros gânglios livres, como o que repousa entre os anéis de Saturno. Porque, se conseguirem contato...

        "Estátuas cegas"? Alguma coisa, talvez uma manifestação sutil do estranho efeito de apreensão de significado a que me referi, pôs em minha mente uma imagem das gigantescas cabeças, sem olhos , que adornavam o litoral da Ilha de Páscoa, antes do grande o terremoto.

        Eu era como um fantasma, flutuando diretamente sobre a mesa. Nenhum deles dava sinais de ter notado minha presença, mas mesmo assim foi com grande cuidado que girei e movi o que percebia como meu corpo etéreo, para me aproximar.

O mapa, com um sistema de coordenadas zerado em algum ponto da Antártida, havia sido riscado sobre pergaminho. Parecia conter uma vista aérea de todo o planeta.

        O anacronismo daquilo me surpreendeu. Até praticamente meados do XIX, a existência de terras ao sul da Austrália era pouco mais que uma conjectura, uma teoria, um conto-de-fadas. Se a reunião a que eu assistia tivesse realmente ocorrido durante o processo de Independência, como...?

        Nesse instante me lembrei da batisfera, da Allende , da pesquisa, do gel em que meu corpo, nu, deveria estar imerso. Foi como um daqueles momentos em que o sonhador acorda primeiro na mente, para só depois - uma mera fração de segundo depois - sentir a plenitude do despertar físico. Só que eu, por alguma razão, eu estava preso no vácuo entre os dois estados. O corpo etéreo flutuava com elegância pela biblioteca, mas no fundo da mente eu sabia que, na batisfera, meu corpo físico mantinha-se imóvel.

        Talvez alguém, no centro de controle, estivesse brincando com as especificações do gel. Em vez de reagir aos estímulos do ambiente extermo, a substância poderia estar sendo moldado por algum outro tipo de programa. Um filme, um jogo. Um vídeo.

        Pensei nas câmaras de privação sensorial usadas nos manicômios, e tremi. Era terrivelmente errado manipular os sentidos de alguém dessa forma. Era...

        A onda de indignação foi rapidamente contida e sufocada pela curiosidade, no instante em que o quarto homem disse:

         - A símbolo está pronto?

         - Quase. O príncipe provavelmente vai querer incluir seu brasão pessoal. - Enquanto falava, o segundo homem retirou um pacote de tecido do bolso do casaco, e se pôs a desdobrá-lo sobre a mesa, cobrindo o mapa. - Mas não creio que ele decida interferir com o padrão do selo. Sua Alteza nos deu carta branca, lembrem-se.

         - Ótimo - disse o terceiro homem. - Ficou perfeito.

Na mesa agora havia um retângulo de pano verde, com um losango amarelo fixado ao centro.

VII. Impasse

        Olhando para as paredes espelhadas da sala de reaclimatação, vi que minha pele estava pálida, as covas e depressões do rosto mais pronunciadas, os olhos mais injetados que o normal. Mas esses eram sintomas comuns nos minutos, às vezes até nas horas que se seguem a um mergulho na batisfera. Mesmo que meu organismo tivesse sempre sido resistente aos efeitos negativos do gel, cedo ou tarde a "síndrome", como ra chamada, teria que me pegar.

        Foi o que o médico disse.

        Depois veio a avaliação dos resultados do mergulho, na sala de monitoramento. Perguntei a Pérez, da forma maias discreta possível, se teria havido algum tipo de realimentação dos sensores ligados ao gel, e ele respondeu que não.

         - Os instrumentos não acusaram nada - disse o argentino. Depois, rindo, acrescentou: - Ora bolas, você nem reclamou de nada!

        Ativei meu bloco digital, e encontrei ali uma transcrição completa do mergulho, com todos os dados, imagens... e todas as minhas palavras , em texto e áudio: apenas os comentários científicos normais. Nada sobre bibiotecas, mapas ou bandeiras.

         Corpo etéreo? , pensei. Corpo físico?

         - Mas, agora o senhor deseja comunicar algum problema, doutor? - quem perguntava era Dunkelhügel. É estranho, mas até então eu não havia notado sua presença na sala. - Temos que garantir que todo nosso equipamento e pessoal esteja nas melhores condições possíveis. - No meio da palavra "condições" o canto da boca de Dunkelhügel se moveu numa espécie de tique, um esgar... um sorriso desagradável. - Principalmente com tantas decisões importantes nos aguardando.

        Em condições normais, eu teria relatado, abertamente, minha suposta "viagem astral". Talvez algo na composição do gel estivesse induzindo alucinações, e esse dado seria importante para a manutenção do equipamento. Mas o estranho sorriso de Dunkehügel me fez refrear essa tendência natural.

Em vez disso, armei eu mesmo um meio-sorriso e, tentando fazê-lo parecer o mais autÊntico possível, articulei dois ou três inócuos lugares-comuns. Rapidamente mudamos de assunto.

Depois de meia-hora, a reunião foi encerrada.

        Oficialmente, à reunião após o turno de três horas na batisfera seguem-se doze "créditos", ou horas livres, para o cientista que fez o mergulho. A maior parte da equipe, no entanto, prefere usar essas horas de folga para aquilo que nos habituamos a chamar de "trabalho informal" - organização de correspondência, indexação de literatura especializada e outras atividades que, no fim, são como a argamassa que mantém os rígidos blocos de "trabalho formal" firmes no lugar.

        Foi o que tentei fazer: retornei ao alojamento e tratei de abrir a seção "miscelânea" de meu bloco de notas digital. É para essa pasta que minha secretária virtual encaminha todo o material que extrapola sua não pequena competência.

        Normalmente, o diretório "misc." contém apenas e-mails pessoais, e dados ainda muito crus para serem incorporados a relatórios oficiais. A secretária virtual é perfeitamente capaz de responder ou processar quase todo o resto. Desta vez, no entanto, o diretório continha uma mensagem direta do ministério da Ciência e Tecnologia.

As comunicações do ministério geralmente tratam de assuntos rotineiros ou contêm solicitações burocráticas, o tipo de coisa que a secretária resolve em poucas frações de segundo. Aquela seria a primeira mensagem ministerial, em anos, que conseguia passar pelos filtros de relevância do bloco de notas e chegar à minha atenção pessoal.

O texto era simples: ele informava que a comissão internacional encarregada de definir os padrões técnicos do equipamento a ser levado pelos astronautas a Europa havia chegado a uma espécie de impasse na hora de optar por um modelo específico de filtro biológico. O impasse era agravado pelas pressões dos chamados grupos organizados Pró-Terra - que defendiam o total isolamento ecolóigico do planeta. Além de reunir uma razoável representação política em certas esferas, alguns Pró-Terra eram suspeitos de sabotagem e terrorismo. A situação, tanto no continente europeu quanto na região amazônica da América do Sul, ainda não era explosiva, mas era claro que a tensão vinha se acumulando. Por isso, as nações acionistas do Consórcio haviam determinado que uma consulta a especialistas internacionais em biologia e astrobiologia deveria ser feita. E eu seria um desses especialistas.

O arquivo com as especificações de cada um dos tipos de filtro encontrava-se em anexo.

Por alguns instantes, fiquei olhando para a tela do bloco de notas sem saber exatamente o que pensar daquilo. De certa forma, o convite para opinar sobre o assunto era uma honra inesperada; mas essa honra representava uma tarefa extra, que iria roubar tempo de meus deveres usuais na Allende . Mas tanto a plantaforma quanto a missão a Europa eram patrocinadas pelo Consórcio; era de se esperar que o risco de perda de desempenho nas pesquisas de campo tivesse sido levado em conta pelos burocratas.

O ideal, concluí, seria que eu abrisse o arquivo anexo e começasse a estudar os filtros naquele mesmo instante. Mas minhas pálpebras estavam pesadas, e eu já sentia o embotamento mental típico de uma longa privação de sono. O que era estranho, pois eu havia dormido bem na noite anterior. Talvez, imaginei, meu corpo estivesse tentando absorver o desgaste causado pela... bem, por aquela... ocorrência na batisfera.

Não vamos fazer nada correndo , pensei. É melhor cuidar disso com a cabeça descansada .

VIII. Visão do futuro

        Eu esperava um sono tranqüilo e restaurador. Não poderia estar mais errado.

        O início pareceu, até, auspicioso: mal fechei os olhos e já estava mergulhado no abismo negro da inconsciência. Um sono sem sonhos, sim, seria o ideal: nenhuma luz, nenhum som, apenas repouso . Mas esse estado de coisas não durou muito.

        Primeiro surgiu uma luz violeta, uma quase não-luz, mas que, de tão intensa, quase queimou meu olho onírico; depois o som, um estrondo que fez vibrar cada fibra do meu corpo, que "ouvi" por meio de ossos, dentes e entranhas, enquanto os tímpanos, exauridos, sangravam.

        De alguma forma, eu sabia que estava sonhando. Que os danos a meu corpo não eram reais, mas apenas metáforas criadas pela mente para abarcar a... intensidade do que acontecia ao redor.

        Intensidade. Sim, essa era a palavra. Era intenso o cheiro de carne queimada, de asfalto derretido. Era intenso o toque, em minha pele onírica, do vento quente, áspero, denso e sujo com nuvens de metal, pedra e osso vaporizados.

        Intensa era a destruição: prédios que, de alguma forma vaga, eu sabia terem sido construífdos com algumas dezenas de anadres, agora não passavam de cabos e estacas retorcidas, projetando-se meros centímetros, no máximo um metro, acima do solo.

A estáuta do Cristo perdera cabeça, pescoço e um braço. O que antes havia sido uma representação do Redentor agora parecia pouco mais que uma grotesca serpente angulosa.

As águas da baía ardiam em chamas imundas, que produziam mais fumaça que luz.

        intensa também era a violência das tropas.

Não era difícil ver os soldados, em armaduras do mesmo tom obscuro de violeta, do mesmo tipo de antiluz que permeara o clarão inicial. Mas os trajes de combate não eram estranhos apenas na cor (ou não -cor). Havia algo de errado com o metal, ou polímero, de que eram feitos: a substância refletia a luz natural de forma viscosa , não sólida; e parecia haver algo de úmido no som das inúmeras, incontáveis articulações que se ativavam a cada movimento... não o tipo de som que se poderia esperar de um sistema hidráulico, ou de um exaustor de lubrificante, não. Era alguma outra coisa , que minha mente tentava traduzir como umidade .

Suas armas não emitiam energia, nem projéteis, mas jatos de uma substância colóide, translúcida, que refratava a luz do sol em freqüências e cores que nada tinham a ver com o espectro conhecido. Esses jatos podiam fazer explodir, cristalizar ou dissolver o alvo; se esses efeitos diferentes eram causados por algum tipo de ajuste no ato do disparo, não pude notar. Por um momento, imaginei que os colóides estivessem vivos, e de alguma forma soubessem qual a melhor abordagem para cada vítima.

Essas tropas provavelmente tinham ordens de executar toda a população civil. Os soldados reviravam escombros, vasculhavam túneis e porões, escalavcam os poucos prédios, não mais que esqueletos nus, penetravam no que restara da floresta, onde algo semelhante a um matagal crescia em formas retorcidas, numa exuberância apocalíptica, mutante.

E cada vez que alguém era encontrado, quase sempre crianças ou jovens vivendo como animais, incapazes de falar, com uma ou mais feridas abertas nos braços e pés inchados, a arma colóide era ativada. E em cada uma dessas vezes o resultado do ataque era diferente. Sim , concluí, com o distanciamento emocional comum a certos tipos de sonho, onde o sonhador testemunha horrores como quem vê as nuvens a mudar de forma no azul do céu. Sim, a substância da arma está viva. Viva e, provavelmente, curiosa . Em todas as execuções, o colóide emitia sempre o mesmo som; era como uma sucessão de estalos secos, como água caindo sobre uma chapa quente. O ruído pode ser transliterado em uma seqüência de sílabas simples, assim: te-ke-li-li .

Mas nem sempre esses estranhos guerreiros em armadura levavam a melhor. Haveria talvez algumas centenas de civis sobreviventes, e os soldados trabalhavam, diligentes, na tarefa de reduzir o número a poucas dezenas, depois talvez a zero - e era inevitável que obtivessem sucesso. Mas, se a guerra estava ganha pelo opressor, em algumas escaramuças menores a população ainda conseguia extrair um pequeno gosto de vingança.

Em meu sonho, vi isso acontecer uma única vez; e foi o choque da revelação que se seguiu que quebrou o estranho torpor emocional que me envolvia, fazendo minha mente recuar, aterrorizada, de volta à superfície, à consciência e à sanidade. Mas, me adianto.

O soldado estava escalando um esqueleto de edifício, tentando alcançar uma jovem - não teria mais que dezesseis anos - que se escondia no topo da estrutura. O jato colóide provavelmente teria alcance suficiente para atingir a garota, mas ela era esperta, movendo-se de forma a manter, sempre, algum obstáculo entre si mesma e a arma que se projetava do antebraço esquerdo do guerreiro.

A estrutura toda teria, no máximo, três andares. Não se tratava, como pude observar, dos restos de um único edifício, mas de alguma espécie de abrigo recente, construído com dejetos catados pela cidade. As placas de polímero não estavam aderidas, mas amarradas ; havia, mesmo, vigas e plataformas de ferro e concreto, vindas de construções bem antigas.

Como alguém teria conseguido juntar todo o material, e ferramentas, sem ser incomodado pelos invasores? Como alguém teria conseguido realizar o trabalho , sem dúvida hercúleo, de erguer aquilo , sem ser morto?

Havia fragmentos de algum tipo espalhados pelo chão. Eram como diminutas peças de um quebra-cabeça e, fazendo um exercício mental para tentar adivinhar qual seria a figura completa, concluí que os fragmentos não compunham um único objeto, mas inúmeros; e que todos esses dispostivos seriam idênticos entre si: pequenos diamantes amarelos.

O guerreiro em armadura mal teria chegado ao segundo "andar" da estrutura quando algo - a princípio imaginei que fosse uma espécie de asa delta, mas depois vi que se tratava de uma enorme, ainda que precária, pipa amarela - projetou-se a partir do topo do abrigo. Imagino que o brinquedo estivesse ligado a alguma das amarras que mantinham o esqueleto estático, pois assim que o vento soprou com maior força, toda a estrutura começou a tremer.

O soldado gritou algo - pareceu-me uma versão mais gutural do refrão te-ke-li-li - e, no instante seguinte, toda a estrutura veio abaixo. Tanto o guerreiro quanto a jovem também despencaram; e pude ver que a jovem caía girando o corpo, deliberadamente, para atingir o calçamento despedaçado com a cabeça .

Ela queria morrer, mas morrer revidando.

O guerreiro, que tinha ainda um andar para subir, foi parcialmente soterrado pelos escombros. Uma viga varou seu ombro direito, prendendo-o ao chão como um alfinete prenderia uma borboleta num mostruário.

Passaram-se dois, três minutos. Nenhum movimento. Aproximei-me, relutante - ou, minha consciência onírica trouxe a imagem para mais perto de mim.

Estendendo braços invisíveis, toquei o elmo da armadura. Tentei removê-lo. E ele saiu, devagar, emitindo sons e produzindo texturas que me faziam pensar mais na concha de um molusco que no capacete de um soldado. A peça estava presa à cabeça do guerreiro por uma série de filamentos brancos, leitosos, e que, apesar da cor, cheiravam como fibras de carne crua.

A cabeça que aquela... casca ... protegia era alienígena.

Como descrevê-la? Um cilindro irregular, formado por um aglomerado, talvez uma dezena, de gomos , ou bulbos, de contorno vagamente triangular. A cor era um verde doentio, leitoso, esbranquiçado. No centro aproximado de cada bulbo, havia uma espécie de filamento rijo, ou espinho. E foi ao estudar mais detidamente um desses espinhos que senti meu ego onírico ser dilacerado, não, destroçado por uma onda de choque, horror e repulsa.

Porque, na base de cada um deles, na raiz de onde partiam os filamentos, havia uma minúscula estrutura vestigial. Algo pequeno, pouco mais que um ponto, mas que ainda mantinha as características de textura, e cor e, Deus, movimento - as características, eu digo, de um olho humano .

IX. A Consciência

        Acordei banhado em suor. Meus cabelos, encharcados, grudavam no crânio, no rosto. Eu devia estar suando profusamente, e há horas. Uma gota caiu sobre meus lábios e senti o gosto salgado.

         O sangue humano tem a mesma concentração salina da água do mar . O pensamento, inútil, cruzou minha mente, vindo não sei de onde. Sobre a escrivaninha, meu bloco de notas piscava, informando a chegada de mais uma mensagem que exigia resposta pessoal.

        Era de Howard Mason, um americano, líder-assistente da equipe de pesquisa ecológica. Ele queria conversar comigo. Respondi dizendo que iria encontrá-lo numa das salas de runião dentro de quarenta minutos.

        Ele provavelmente queria iniciar mais uma rodada de discussões sobre sua teoria do Grande Animal Pré-Cambriano. Mason era um defensor ardoroso do modelo "pacífico" para a ecologia do período - modelo segundo o qual não havia presas e predadores na Era Pré-Cambriana, e todas as relações entre-espécies aconteceriam de forma pacífica (daí o nome), como, por exemplo, entre flores e abelhas. Mas Mason queria levar esse modelo ainda mais longe: para ele, a Terra teria sido habitada por um único ser ... Um ser do qual todos os arqueanos já descobertos seriam, na verdade, meros órgãos e células.

        Minha primeira reação à idéia, quando Mason a descreveu para mim, meses atrás, foi considerá-la uma bela metáfira. Mas o americano negou que se tratasse de uma figura de linguagem, como a utilizada na chamada hipótese Gaia, sobre a ecologia contemporânea. Para ele, o Grande Animal era, ou havia sido, verdadeiro . A partir daquele dia, tornou-se fato comum passarmos horas a fio debatendo o tema, eu levantando objeções, Mason procurando rebatê-las o melhor possível. A coisa toda não passava de um verdadeiro beco sem saída epistemológico, e ambos sabíamos disso, uma vez que seria extremamente difícil (para não dizer impossível) reunir dados capazes de demonstrar que Mason estivesse certo, ou errado, acima de qualquer dúvida.

        Mas, mesmo assim, discutíamos. O duelo verbal ajudava a manter nossas mentes afiadas.

        Não eram novos argumentos para o debate que ocupavam meuis pensamentos, no entanto. Quarenta minutos depois, mesmo enquanto eu caminhava na direção da sala de reuniões, a única imagem em meu cérebro era a daqueles olhos - tão humanos, mesmo reduzidos, mesmo com a córnea, quitinosa, afunilando-se e distendendo-se sob a forma de espinhos.

        Havia algo naqueles olhos... uma qualidade do brilho, algo que meu ego onírico percebeu pouco antes do último estertor reduzir o guerreiro a um corpo sem vida. O brilho! Era uma luz distante, fria, impessoal; se os olhos são as janelas da alma, pensei, então a alma daquele... daquela... pessoa ... já estava muito longe, antes mesmo que a morte chegasse.

        Que palavra os homens do século XIX haviam usado durante meu delírio na batisfera? Consciência ? Sim, talvez o soldado tivesse sido guiado por uma consciência distante; uma força imperiosa e, ainda assim, ausente.

        E o selo de que aquelers homens tanto falavam... A bandeira era o selo, com seu losango amarelo - como a pipa gigante do sonho. O que Dunkelhügel havia dito, mesmo? Um símbolo de pa plenitude do espírito?

        Do espírito humano .

X. A Morte

        Howard Mason estava morto.

        Eu realmente gostaria de poder dizer que as luzes da sala de reuniões estavam apagadas; que só descobri o corpo depois de muito procurar por meu colega; que a descoberta do fato trágico se deu aos poucos, através de uma série de pequenos indícios.

        Se tivesse sido dessa forma, o choque, ao menos para mim, teria sido muito menor.

        Mas não foi o que aconteceu.

        Abri a porta da sala de reuniões e a luz, mais forte que a quase-penumbra do corredor, literalmente transbordou em minha direção. Com ela veio a imagem do cientista americano, um homem magro, loiro, não muito alto - e a visão do sangue.

        Mason estava virado de frente para a porta, sentado em uma cadeira. O ângulo oblíquo da cadeira, apoiada de encontro à grande mesa central, mantinha o corpo ereto. Partes do rosto, todo o pescoço e o peito do americano estavam sujos de sangue. Havia uma mancha, quase um semicírculo, de líquido vermelho ao redor do cadáver. A mancha ia longe: um metro, talvez um pouco mais.

        Por quase um minuto, achei que iria vomitar. Mas a erupção simplesmente não vinha; era como se um novelo de arame farpado ficasse subindo e descendo, na garganta, no peito, no estômago. Achei que eu também iria morrer ali, sufocado, engasgado pelo medo.

        Então, controlando-me, voltei ao corredor e ativei um dos painéis de emergência médica.

        Os paramédicos encontraram no chão, abaixo da mão esquerda de Mason, uma navalha aberta. Navalhas de barbear eram outro daqueles anacronismos que, desde o Renascimento Europeu, vinham ganhando ares de coisa elegante. A ferida no pescoço, uma segunda boca escancarada, conferia: mais profunda no lado direito, quase superficial na extremidade esquerda. A hipótese de suicídio foi rapidamente levantada e aceita, embora não pudesse ser confirmada.

        E ela não podia ser confirmada por uma razão muito peculiar: as câmeras do circuito interno de vigilância, instaadas dentro da sala de reuniões, haviam parado de funcionar pouco antes do momento em que, conforme um dos médicos estipulou, teria ocorrido a morte.

        Os últimos minutos de gravação mostravam Dunkelhügel entrando na sala. Ele e Mason conversaram sobre alguma coisa. O defeito da câmera deve ter se iniciado aí, já que o equipamento falhou em registrar o áudio. A imagem final mostra o Homem Obscuro encaminhando-se para a saída.

        Pierre Dunkelhügel não poderia ser obrigado a fornecer qualquer tipo de explicação. Pelo menos, não por qualquer um de nós, a bordo da Salvador Allende . Como observador especial, ele estava sob autoridade direta dos acionistas em Zurique, ou do Conselho Político belga. Mas, embora tenha realmente evitado fazer declarações públicas, o Homem Obscuro acabou falando sobre, em particular, o assunto.

        Falando comigo .

        Estávamos no "funeral" de Mason - na verdade, o embarque do corpo para os EUA. Eu e mais alguns dos cientistas que trabalhavam com o americano havíamos nos perfilado ao longo da rota de transporte de carga perecível, por onde o caixão com o corpo teria que passar. Dunkelhügel se aproximou de mim, vindo por trás, e sussurrou em meu ouvido:

         - Não imaginei que ele reagiria assim.

         - Reagiria a quê? - perguntei, sem me virar e tentando manter o volume da voz o mais baixo possível.

         - Nossa conversa... Fui demiti-lo. Uma pena que ele tenha decidido reagir assim.

         - Demiti-lo?

         - Zurique não queria mais bancar a pesquisa do "Grande Animal Pré-Cambiriano". Não depois do último relatório que você enviou sobre o assunto. Por isso, mandaram-me demiti-lo. Uma pena.

        Senti como se meu coração fose congelado em meio a um batimento ainda incompleto. O mais chocante era a frieza com que Dunkelhügel dizia aquilo - com que ele não só confessava ter levado Mason ao suicídio, como ainda implicava o meu trabalho na morte do colega. Estávamos perfilados numa última homenagem ao pobre Howard Mason, e o Homem Obscuro sussurrava sua confissão aberta e acusação velada como quem narra os lances pouco inspirados de uma tediosa partida de xadrez.

         - No final, acho que ele não estava preparado, lúcido o suficiente para tomar a decisão correta. Muito estresse. Uma pena.

        Meu coração completou seu batimento suspenso no momento em que ouvi um som de passos abafados, sinal de que o Homem Obscuro afastava-se. Tinham se passado poucos instantes, mas para mim era como se o sol voltasse a nascer, como se eu tivesse passado uma noite inteira no frio e em claro. Era como se, entre a chegada e a partida de Dunkelhügel, a Terra tivesse executado uma volta completa sobre seu eixo.

XI. Névoa púrpura

        Não me senti em condições de retomar o trabalho naquele dia - minha folga pós-mergulho já havia terminado, e eu deveria me reapresentar ao laboratório. Decidi ignorar as regras, no entanto, e retornar ao alojamento.

        Mas, assim que cruzei a porta que deveria dar acesso a meu quarto, me vi transportado para outro tempo. Outro lugar.

        Esses novos tempo e lugar não eram desconhecidos; não eram sequer novos, ao menos não no sentido estrito da palavra. Eu estava de volta à grande biblioteca de minha primeira visão.

        Só que desta vez era diferente. Porque, desta vez, eu estava lá fisicamente .

        A biblioteca, também, parecia ter mudado. As jóias e metais nas capas dos livros emitiam uma luz mais fraca, mais fosca; a madeira das estantes havia perdido o brilho, e havia rachaduras visíveis. No lugar da grande mesa de mapas, o centro da sala era ocupado por uma espécie de pira, ou trípode, da onde emanava um fumo espesso, de cor púrpura. Atrás da trípode havia um homem.

         - É arriscado usar este incenso, mas não pareceu haver alternativa - disse o estranho, dirgindo-se a mim.

        Fitei-o atentamente, estreitando os olhos para tentar ver através da fumaça. Era um homem idoso, de cabeça calva e barbas brancas. Talvez fosse uma versão envelhecida de um daqueles que eu havia visto antes, durante o delírio na batisfera. Mas era impossível dizer com certeza.

         - Quinze anos atrás, senti sua presença neste aposento - ele continuou. - Talvez os outros tenham sentido, também. Agora, homem do futuro, brasileiro , é preciso que você compreenda. Compreenda o que deve fazer. Em sua época... a humanidade dispõe-se a caminhar por todos os outros seis planetas, estou correto? A caminhar sobre cada um deles, e a trazer objetos, corpos, amostras de volta. Não é?

         - Sim - respondi.

         - Então... bem, então o selo deve acompanhá-la, sempre. Deve ir em cada nau. Na ida e na volta. É imperativo. Compreende? Imperativo ! Se a Consciência entrar em contato consigo mesma... Nada mais será como era. É incrível, mas é verdade: passadas tantas eras, mesmo a morte, a morte primordial, poderá perecer. Inadmissível!

         - Que Consicência é essa? - perguntei. - Do que vocês falavam aqui, há quinze anos? Que selo é esse?

         - Ubbo-Sathla ! - ele gritou, exasperado, e a vibração quase partiu o véu púrpura de incenso queimado. Por alguma razão, tive medo de que os fumos se dissipassem. - Assim o chamavam na antiga Hiperbórea, na primeira civilização, que surgiu e desapareceu na aurora do tempo, antes mesmo que o Ártico congelasse. Nós o chamamos de A Consciência. Que importam os nomes? Essencial é o conceito ... E isso, nenhum homem pode compreender ou explicar... Não por completo.

         - Tente - pedi.

         - Nós vivemos, como vermes, no corpo dele . Como vermes ! Alimentamo-nos de seu cadáver. Nossa prole surge da decomposição de sua carne. Ele é enorme; existe em mais dimensões do que jamais poderíamos conceber. Nossas almas são meras lascas de seus ossos . Entende? Oh, claro que não! Ymir, o gigante cujo sangue deu origem aos oceanos, é apenas uma pobre metáfora para ele !

        "Como disse, ele é enorme . Seu corpo toca esta dimensão em todos os sete planetas, talvez também no sol, talvez em cada lua . E ele permanece morto porque, graças aos Antigos, as partes não se tocam mais através do Abismo. Mas, se houver contato... é como diz a Profecia: com o passar das eras, mesmo a morte pode perecer!

        "Por isso foi criado o selo. Compreende? Se Ubbo-Sathla despertar, toda a vida voltará para ele. Ele é a fonte e o fim, o alfa e o ômega... Seremos, cada um de nós, cada homem, peixe, fera ou planta... seremos absorvidos, integrados . O sonho da identidade terminará, e voltaremos a fazer parte de Ubbo-Sathla. Como um canibal de si mesmo, ele nos irá devorar, corpo e alma.

        "O homem sempre temeu, nos mais profundos recessos de sua mente, que a integração a Ubbo-Sathla fosse inevitável. E, no mais profundo da alma, esse momento sempre foi encarado com o mais absoluto terror. O homem sempre intuiu a Consciência. Mas, para escapar do medo, a humanidade passou a mentir para si mesma, mascarando a Consicência, chamando-a de Nirvana, de Paraíso, de reencontro com o Criador.

        "Nossa Ordem, no entanto, preservou o conhecimento original, do mago Eibon, de Al-Azrad. E nós conhecíamos o selo deixado no Pacífico pelos Antigos, dos quais Ubbo-Sathla era criatura e escravo, para subjugá-lo, mantê-lo morto. E, prevendo que esse selo pudesse ser destruído no futuro, divisamos um novo signo de poder. Um selo que impedirá que a Consciência transponha os Abismos entre os mundos, que volte a tomar contato consigo mesma. Esse novo selo deve viajar , compreende? Onde quer que haja uma possibilidade do Abismo ser transposto, lá deve estar o selo.

        "Nós também queríamos vincular o selo a um povo, a uma nação. Era uma forma de garantir que a imagem sobreviveria, mesmo que, em último caso, apenas nos livros de história. Para isso, influenciamos o Imperador do Brasil... Ubbo-Sathla, em suas tentativas de voltar à vida, já havia manipulado povos inteiros, antes. No Egito, em Roma, na Galiléia. Nesse aspecto, a Ordem aprendeu muito com ele.

        "Um último aviso: ao tentar despertar, a Consciência poderá gerar um emissário, um avatar. Esse homem poderá reconhecê-lo, reconhecer o poder do selo. Cuidado.

"E... é precido dizer: o Brasil, como portador do selo, estará sob forte ameaça, sob grande perigo. O país, como portador e guardião inconsciente do selo, é como o cadeado na poorta de uma cela... E esteja certo, muita, muita coisa pode passar, vazar por entre as grades, as barras, mesmo com o fecho seguro. Talvez a nação não sobreviva. Mas é um povo por toda uma espécie".

Lembrei-me então da visão anterior, do Rio destruído, do Cristo quebrado, dos soldados em armadura.

        Eu me preparava para dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas não tive a oportunidade. Anyes que pudesse abrir a boca, o vapor púrpura me envolveu totalmente. Por um instante, perdi todo o senso de direção, e mesmo de peso - eu não sabia se caía ou levitava.

        No momeno seguinte, eu estava sentado em minha cama, com meu bloco de notas na palma da mão. Na tela do bloco, aparecia a imagem holográfica de um dos filtros biológicos propostos para a missão a Europa.

Esse filtro era composto de inúmeros cristais sintéticos, como minúsculos diamantes.

Diamantes onde cada face era um perfeito losango amarelo.

XII. Planetas

Desligueio o bloco imediatamente. Eu não estava em condições de analisar... muito menos de decidir...

Decidir . A palavra estalou em minha mente, como a faísca de um isqueiro. E, por algum mecanismo obscuro de associação, lembrei-me de Dunkelhügel. O que ele havia dito, quando saí da batisfera? Melhores condições possíveis... Com tantas decisões importantes nos aguardando . Mas, que decisões? Naquele momento, eu ainda não havia recebido a solicitação sobre os filtros.

E no caso de Mason? O Homem Obscuro dissera... Ele não estava preparado, lúcido o suficiente para tomar a decisão correta . De novo: o que havia para Howard Mason decidir? Ou será que a teoria do Grande Animal Pré-Cambriano se aproximava demais da verdade?

Você está delirando , disse uma voz dentro de mim. Pare com isso . Vá ao laboratório. Faça um esforço, trabalhe. É melhor.

        Como uma espécie de preparação psicológica para as tarefas que me aguardavam no terminal do laboratório, reativei o bloco de notas. A secretária virtual perguntou se eu desejava alguma coisa e, imaginando uma forma de provar para mim mesmo que meus delírios não passavam disso - meras fantasias sem significado - pedi a ela que pesquisasse as datas de descobrimento dos três planetas externos do Sistema Solar: Urano, Netuno e Plutão.

        Eu sabia que, durante toda a Antigüidade, passando pela Idade Média e pelo Renascimento, a humanidade havia descoberto apenas cinco outros planetas no céu, perfazendo, com a Terra, um total de seis. Mas o misterioso anfitrião de meu último delírio havia dito que Ubbo-Sathla ocupava os sete planetas. E eu tinha a impressão de que os três últimos só haviam sido descobertos no século XX. Portanto, minha "visão" do século XIX teria de ser, forçosamente, uma fantasia.

        Mas eu estava errado. Dos três mundos externos, apenas Plutão foi avistado pela primeira vez no século XX. Urano era do final do século XVIII. Já Netuno havia sido descoberto em 1846.

        Mil oitocentos e quarenta e seis! Se a última visão se passava quinze anos depois da primeira... E a primeira, ao que tudo indicava, havia transcorrido em 1822... Então, minha conversa com o ancião teria ocorrido em 1837. Depois da descoberta de Urano, mas antes da de Netuno.

        Em um período onde acreditava-se haver sete planetas no Sistema Solar. Informação histórica de que eu absolutamente não dispunha... Antes da secretária realizar a pesquisa.

        Não é este um dos sintomas clássicos de possessão demoníaca? Quando a vítima revela conhecimentos a que nunca teve acesso?

XIII. Caleidoscópio

        A idéia de possessão trouxe à superfície um último retalho, um tênue filamento de razão, de sanidade. O quê, pensei, o que os psiquiatras dizem a respeito dos possessos? Que, mesmo que a vítima negue conhecimento prévio das línguas, dos fatos, de tudo aquilo que o "demônio" articula, ela, essa pobre, infeliz pessoa, na verdade conhece tais coisas - inconscientemente. A língua de um país distante pode ter sido captada pelos ouvidos sensíveis do possesso quando ainda bebê, no berço, através dos ecos de um filme legendado, de um programa de rádio; os fatos nunca antes estudados podem ter sido vistos, de relance, em uma enciclopédia, em um documentário, um filme, e gravados no mais obscuro da mente.

        Sim. Talvez fosse isto. Talvez minhas visões, meus sonhos, não passassem de uma tapeçaria fina, uma trama tecida por fios esquecidos na mente insconsciente.

        Talvez.

        Mas, não. Ao mesmo tempo em que a razão lutava para se manter à tona, eu sentia uma nova convicção ganhar corpo dentro de mim. Uma certeza maciça, que parecia preencher minhas veias como ferro derretido, que dilatava os músculos. De repente tive medo de explodir, medo de que minha pele fosse muito fraca, inelástica, para abrigar a certeza que se expandia, e ganhava terreno, que forçava as costelas, pressionava a coluna, o coração.

        No final, a certeza era a verdadeira substância; eu, apenas a forma .

        Dunkelhügel notou. De alguma forma ele soube, ou sentiu, que, a partir de determinado momento, eu me havia convertido. Que eu era um crente ; e que, como ta, iria enfrentá-lo. Tomei ciência dessa nova percepção por meio de um súbito adensamento do ar - não, não do ar. Do éter .

        Nas semanas seguintes, minha nova fé foi posta à prova inúmeras vezes. As visões se tornaram lugar-comum a partir de então. Por isso sei que o Homem Obscuro as enviava. Elas eram avisos, ameaças, provocações: o Brasil destruído. Rio, São Paulo, Campinas, Recife, Manaus, tudo em frangalhos; todas as demais nações, manipuladas por Ubbo-Sathla, ergendo-se contra nós em toda a fúria acumulada por cem anos de paz: as já quase esquecidas armas químicas, atômicas, sônicas. E aqueles que haviam aceito retornar à Fonte Primordial, aqueles que haviam se deixado dissolver no Nirvana, ressurgiam como soldados em armaduras, nem homens nem moluscos, mas anticorpos do Grande Ser, do escravo disforme dos Antigos, combatendo a infecção representada por toda vida individual. E a cada visão, a mesma mensagem implícita: Renda-se. É inútil. Evite mais sofrimento .

        As visões passaram a me assaltar em público. No escritório, na cantina, nas salas de reunião. Essa intempestivade era, também, parte do plano: ela existia para me desacreditar - aos olhos dos demais, claro, mas (e está a malícia) antes meus próprios olhos .

        Claro! Pois, antes de ser um crente, eu era um cientista . E se tudo não passasse de estafa? Cansaço? E se o excesso de missões na batisfera tivesse algum tipo de efeito colateral?

        Comentava-se isso pelos corredores. Da Allende e de meu próprio cérebro.

        Pessoalmente, Dunkelhügel atuava para ampliar essa sensação: sempre um comentário ferino sobre a necessidade de equilíbrio emocional no trabalho; sempre as insinuações a respeito de Mason, inevitavelmente acompanhadas por um dar de ombros desdenhoso, como se a morte do ecólogo fosse a conclusão, natural e inevitável, de um processo de degeneração mental.

        Sempre as meias frases, a palavra solta no ar, dando a entender que eu ia pelo mesmo caminho.

        Ao mesmo tempo em que isso tudo acontecia, a necessidade de decidir sobre o modelo de filtro a ser usado na missão a Europa tornava-se mais e mais premente. Uma rápida análise técnica havia me revelado que todos os sistemas apresentados deveriam funcionar satisfatoriamente. A dúvida, portato, parecia ser mais política, envolvendo as diferentes nacionalidades de fabricantes e investidores.

        Tentei ganhar tempo, pedindo mais e mais especificações técnicas da nave, dos trajes espaciais, dos computadores de bordo. Entrevistei, por e-mail, inúmeros empresários, técnicos, políticos... Até mesmo alguns ativistas Pró-Terra.

        Durante todo esse tempo, tratei de mascarar meus pensamentos com uma pesada cortina de dúvida ; Dunkelhügel havia sentido minha conversão ao novo credo, à Ordem dos homens que se reuniam na biblioteca cravejada de jóias. Se ele sentisse que eu já havia decidido pelo filtro de cristais amarelos...

        Eu temia por minha vida. A lembrança de Mason, da poça de sangue, me assombrava tanto, ou mais, que o horror das visões.

        Minha vida era um caleidoscópio de horrores.

XIV. Lealdades

        Mas, no final, tudo se resumia a uma questão de lealdades. É por isso que escrevo este depoimento: para que todos saibam a quê, e a quem, fui fiel.

        Eu poderia salvar minha Pátria de inúmeros horrores, mas apenas para condená-la, juntamente com o restante da humanidade, à assimilação final por Ubbo-Sathla. Eu poderia salvar a humanidade, mas impondo enorme sofrimento a meu povo - e era a primeira vez que pensava naquelas pessoas como minhas - e perdendo a vida.

        Dunkelhügel tornara isso bem claro. Ele não ameaçava , é óbvio. Não com palavras. Nada que pudesse ser gravado, transcrito, usado . Nenhuma prova. Mas havia os olhares, os sorrisos que deixavam caninos e gengiva à mostra. A sombra que parecia acompanhá-lo a toda parte era mais densa quando eu estava por perto.

        E quando ele falava, suas observações tão, tão inocentes - sobre solidão, e alucinações, sobre símbolos místicos e a morte de Mason, sobre como "grandes decisões pesam nos ombros de pequenos homens" - cada palavra saía de sua boca como se esculpida em miasma.

        Mas, no final, optei pela menor das traições. O país será salvo, já que escolhi um filtro de cristais vermelhos. E talvez, a humanidade também escape.

        Rezo, apenas, para que os tripulantes da missão a Europa me perdoem. Rezo para que, quando as autoridades do Consórcio descobrirem - como inevitavelmente irão - que fui eu quem forneceu as plantas da nave e os passes de segurança aos sabotadores Pró-Terra, a punição seja rápida, e com um mínimo de dor.

        Mais do que tudo, rezo para que, quando a sonda for destruída e os pobres astronautas, os jovens inocentes, forem tragados pelo vácuo sem luz e som, sem calor e sem forma... E sentirem a dor no peito, o frio em pés e mãos, e o Sol abrasador... rezo para que, neste mesmo instante, Ubbo-Sathla reabsorva seu avatar, e arraste Pierre Dunkelhügel de volta ao lodo primordial.