A equação

Carlos Orsi Martinho

 

        Há quem acredite que o mundo é governado, secretamente, por um comitê de banqueiros. Que todos os presidentes, reis e ministros são parte de uma grande farsa, peões e marionetes de um grupo de financistas que se reúne uma vez ao ano, ou sempre que necessário, em um abrigo nuclear secreto, escavado por debaixo do cofre-forte de um banco suíço.

Também há quem diga que nesse cofre-forte estão guardados o ouro dos Templários; o crânio de João Batista, juntamente com um frasco do sangue de Cristo; o elixir da vida eterna e a pedra filosofal; ovos do monstro do Lago Ness e do último dinossauro, morto em 1919; e outros tesouros que eles não querem que nós tenhamos – o único protótipo funcional de um motor de automóvel movido a ar; a cura do câncer, sabor framboesa; o reator nuclear 100% seguro; o teletransporte, o chocolate emagrecedor, o computador que raciocina e a dobra espacial.

As pessoas que crêem na existência desses imperadores secretos, desses gnomos de Zurique – como às vezes são chamados – estão certas, mas não tão certas quanto pensam. O cofre-forte e seu conteúdo existem; o “bunker” existe, e fica, sim, em Zurique. Mas não é o comitê quem governa o mundo. Quem governa o mundo é  prisioneiro deles.

Este prisioneiro é um matemático e passa seus dias, há mais anos do que ele próprio se importaria em contar, numa sala de cinco metros quadrados por sete metros de altura, atrás de um fundo falso do cofre-forte. Nesta sala há uma mesa, uma cadeira, uma moringa de água. Lápis e cadernos.

O prisioneiro sabe tudo sobre computadores, mas prefere não usá-los. Os gnomos já lhe ofereceram as mais belas mulheres ou, se preferisse, os mais belos homens; ele não aceita esse tipo de recompensa há tempos. O prisioneiro só quer ser livre de novo. Se não puder, bastam-lhe cadernos e lápis.

Ele foi preso por ser um gênio, e por ser um tolo. É engraçada a freqüência com que essas duas coisas andam juntas. Em 1949, o prisioneiro – que, na época, ainda era um homem livre – descobriu que certos conjuntos de equações poderiam prever, com precisão, o comportamento de sistemas que, até então, eram considerados aleatórios. Quando veio a público, vinte anos depois, essa descoberta foi batizada como “A Teoria do Caos”.

O homem responsável por revelá-la ao mundo (outro homem, não o prisioneiro – ele já estava preso, na época) havia feito sua descoberta ao estudar os ventos e atmosfera; seu primeiro conjunto de equações descrevia, com precisão, o comportamento de um velho moinho de água.

Já o primeiro conjunto de equações do prisioneiro, elaborado vinte anos antes, descrevia, nos mínimos detalhes, o comportamento do mercado de ações. Logo que perceberam isso, os gnomos (que já existiam na época: o elixir da vida eterna, afinal, surgiu no século XVI) trataram de aprisioná-lo – e de usar suas equações para melhor governar o mundo.

Mas, poucos meses depois, no início de 1950, as equações pararam de funcionar. Elas não previam mais as altas e baixas do mercado; tornaram-se inúteis. Enfurecidos, os gnomos voltaram-se contra seu prisioneiro. Na época ele ainda era jovem, e tinha medo – nem sabia que era prisioneiro, pois sua cela de então, a suíte imperial de um grande hotel em Berna, tinha um terraço aberto. Naquela época, ele aceitava as mulheres e os homens que lhe eram oferecidos.

Assustado, o prisioneiro voltou a trabalhar nas equações e descobriu onde estava a interferência: na própria existência da equação. O sistema, ele explicou, era muito sensível às condições iniciais de operação; mesmo um erro na sétima ou oitava casa decimal poderia fazer uma diferença enorme. Ao criar a equação, o prisioneiro havia alterado essas condições. A fórmula, afinal, descrevia o mercado de capitais tal como era antes de a equação passar a existir.

Uma nova equação poderia ser criada? Sim. Mas ela só iria descrever o funcionamento do mercado sob os efeitos da equação anterior – e, portanto, deixaria de ser útil dentro de algum tempo. Segundo o prisioneiro, a validade máxima de qualquer uma de suas fórmulas sobre bolsas e mercados seria de oito meses.

Foi então que os gnomos decidiram levá-lo para o cofre-forte. Onde, desde então, vem criando equações para corrigir equações. Sem pausa. Sem descanso.

Com o passar do tempo, o prisioneiro passou a elaborar fórmulas para outras coisas. Em suas curvas e gráficos, previu o surgimento do computador, viagem do homem à Lua; foi um de seus gráficos, aliás, que convenceu os gnomos a cancelar a III Guerra Mundial, marcada inicialmente para 1962. “Os russos vão se estrepar sozinhos”, ele disse. “Dêem um tempo”. Mas, de novo, cada conjunto de previsões, pelo simples fato de existir, afetava a realidade e, depois de algum tempo, deixava de ter valor. Novos conjuntos tinham que ser elaborados. Sempre.

E sempre.

E sempre.

Uma vez a cada três meses, um dos gnomos vai visitá-lo. Uma vez ao ano, ele é recebido em audiência pelo comitê todo. E o comitê sempre acata tudo o que ele diz – assim, o prisioneiro governa o mundo.

Não que ele goste da idéia. Na verdade, o matemático gostaria, mesmo, é de ser livre.

Desde os anos 80 que ele vinha pensando nisso. E numa outra coisa, também: não seria possível criar uma grande equação capaz de prever a forma de todas as futuras equações? Um gráfico que contivesse todos os gráficos? Não seria a seqüência infinita de novas equações um outro fenômeno caótico?

Em 1985, o prisioneiro começou a trabalhar seriamente na idéia. Em 1999, ele tinha o conceito completo. Na audiência de 2001, ele a apresentou, ao comitê, a Grande Equação do Universo.

– Deixe-me ver se entendi – disse um dos gnomos. – Com isso, nós poderemos prever todas as equações que serão necessárias, para sempre?

– Exatamente.

– Mas não vamos saber usar essa coisa – disse outro.

– É só programar a fórmula naquele computador secreto de vocês, e pronto. Ele vai cuidar do resto.

– Então nós não precisamos mais de você – afirmou um terceiro.

– Correto. Vocês poderiam me deixar ir.

        Os gnomos se entreolharam. Há anos que eles vinham misturando pequenas doses do elixir da vida eterna na comida do prisioneiro – como resultado, nos últimos quase sessenta anos ele havia envelhecido dez, quinze no máximo. Solto, sem acesso ao elixir, viveria mais uns quarenta, talvez, se tomasse cuidado e tivesse sorte.

– Sim – disse o primeiro gnomo, estalando os dedos. – Vamos deixar você ir.

        Um quarto membro do comitê, que ainda não havia se manifestado, reagiu instantaneamente ao estalar de dedos do colega: sacou uma pistola automática e disparou um tiro certeiro na têmpora do matemático.

        Aquela era uma arma especial, que só deveria chegar ao público por volta de 2020. Portátil, silenciosa e quase sem coice, cada tiro carrega energia cinética suficiente para fazer um búfalo em disparada cair de costas. O prisioneiro estava morto antes que a bala e boa parte de seu cérebro, agora liquefeito, saíssem pelo outro lado.

        Mas o matemático sabia que ia morrer. Morreu porque quis, e morreu vingado. Porque sua meta-equação não resolvia o problema de administrar o mundo; apenas acrescentava uma nova ordem de complexidade às coisas, uma ordem com a qual nenhum homem, nenhuma máquina, seria capaz de lidar – não até que surgisse outro gênio tolo como ele. Porque, veja, a nova curva não era capaz de descrever um mundo onde ela mesma já tivesse sido descoberta.

        Os gnomos continuariam um passo atrás, e desta vez não haveria ninguém para ajuda-los.

        Enquanto seu corpo sem vida rolava pelo chão da grande sala debaixo do cofre-forte, o prisioneiro finalmente se sentiu feliz.