HEINLEIN E O SOLIPSISMO

Lúcio Manfredi

Gigante incontestável da ficção científica, que extrapolou as fronteiras do gênero para ser abraçado pela contracultura, num movimento que rendeu mais de uma tese de sociologia, o americano Robert Anson Heinlein sentiu-se cada vez mais atraído, nas suas últimas décadas de vida, por um sistema filosófico conhecido como solipsismo .

O nome deriva do latim solus ipse , "só o eu", e explica-se por ser o solipsismo uma variante das teorias idealistas que, ao invés de situar o mundo como um repertório de idéias na mente de Deus (idealismo religioso, fundamento das filosofias orientais e representado no ocidente pelo bispo George Berkeley) ou de supor um real incognoscível a que só se teria acesso indireto, mediatizado pelo pensamento e/ou linguagem (idealismo problemático, derivado das Meditações de Descartes e defendida por pensadores como Kant, Schopenhauer e o segundo Wittgenstein), propor a consciência de si, isto é, o eu, como alicerce da realidade. Para resumir em poucas palavras, trata-se de considerar o eu como o verdadeiro princípio criador do universo.

Esse ponto de vista parece feito sob medida para o individualismo exacerbado dos escritores românticos, pelo que o representante por excelência do solipsismo é o filósofo romântico alemão G. W. Fichte. Para Fichte, o eu "põe" o mundo, ou seja, no sentido que esse verbo toma em seu vocabulário, a realidade é construída pelo eu mediante um ato primordial de vontade. Esse conceito teve forte repercussão junto ao romantismo, que o colocou em paralelo com o processo de criação estética, e é dessa forma, alegando que o mundo é criado pela imaginação artística, que o solipsismo chegará às páginas de Heinlein.

À primeira vista, pode parecer surpreendente, diria-se mesmo incongruente, ver teorias desse gênero defendidas por alguém tão pragmático quanto Heinlein. Não devemos nos esquecer, contudo, que enquanto padrão de comportamento, o pragmatismo é uma invenção recente, da virada do século, e nasceu da popularização e conseqüente diluição do pragmatismo filosófico elaborado por William James e Charles Sanders Peirce. James defendia um conceito de verdade relativa, dependente do ponto-de-vista do observador, e Peirce propunha que a realidade fosse, por assim dizer, construída quando da percepção, mediante a elaboração de signos que esclarecem e estruturam um real em si mesmo desprovido de significado. Essas duas atitudes perante o mundo formam as coordenadas do pragmatismo. Nenhuma delas é incompatível com o solipsismo de Heinlein.

É preciso esclarecer que, em não sendo um filósofo, a obra de Heinlein não se propõe a ser uma reflexão filosófica sobre o solipsismo. Isso explica as constantes oscilações, hesitações e recuos do autor em relação às implicações de seu pensamento. Por exemplo, vimos que, ao ser filtrada pelo romantismo, a doutrina solipsista mesclou-se à imagem do artista enquanto êmulo de Deus, criador do universo. Seguindo uma linha semelhante, os multiversos visitados pelos protagonistas de O Número do Monstro correspondem aos que foram imaginados por escritores como L. Frank Baum, Edgar Rice Burroughs, Lewis Carroll e o próprio Heinlein. Mas, em determinada altura do livro, lança-se mão de um argumento mais suave: em um número (quase) infinito de universos, os elementos podem se combinar de um número infinito de formas, e qualquer combinação imaginada por alguém vai encontrar seu correspondente em um dado universo.

A idéia é interessante e ganha um peso considerável quando confrontada com interpretações da mecânica quântica como a Teoria Múltiplos Mundos, de Hugh Everett. Mas o próprio Heinlein a abandona tão logo a formula. Segundo esse raciocínio, o Mundo de Oz onde chegam os viajantes não seria realmente o Oz de L. F. Baum, mas um universo que, devido a uma probabilidade estatística multplicada pelo infinito, apresentaria uma correlação bijetora com Oz. Sendo assim, não se vê como Deety, leitora assídua da série de Oz, poderia ser reconhecida pelos habitantes daquele universo.

Outra oscilação semelhante ocorre entre o que se poderia chamar, respectivamente, de versões fraca e forte do solipsismo. Para a primeira, cada indivíduo tem a sua própria versão da realidade - equivalente à verdade relativa de James - e o universo seria algo assim como a intersecção de todos os mundos "postos" por cada consciência individual. É uma concepção desse tipo que se apresenta em Um Estranho Numa Terra Estranha e ressurge ao longo de toda a série dos Multiversos. Porém, em alguns momentos específicos, Heinlein mostra uma certa inclinação pelo solipsismo versão forte.

Para compreender o que vem a ser esta última, é preciso remontar à célebre redução cartesiana que se encontra na raiz das interrogações ontológicas da filosofia moderna. Como é sabido, Descartes propôs-se a encontrar uma base inquestionável para a verdade e, para tanto, eliminou não apenas as percepções e opiniões cuja falsidade pode ser demonstrada, e.g. sonhos e delírios, mas também tudo aquilo cuja verdade não pode ser cabalmente verificada. Como ele mesmo diz, bastava uma única dúvida, por tênue que fosse, para invalidar a percepção ou o conceito. Obviamente, com isso, acaba-se invalidando praticamente tudo: os dados sensoriais, as crenças religiosas, os pensamentos. Pode-se duvidar de tudo, diz Descartes, menos do fato de se estar duvidando. É daí que extrai seu cogito : "Penso, logo sou." ( Cogito ergo sum. ) Minha existência, demonstrada a mim mesmo pelo fato de estar pensando, é minha única certeza possível. Mas esse é um dado imediato, que não posso transmitir aos demais. Por outro lado, do meu ponto de vista, as outras pessoas são apenas outras tantas percepções sensoriais, cuja realidade pode ser questionada.

Se, uma vez chegado a esse ponto extremo de redução, Descartes reconstrói a realidade apoiando-a sobre a certeza do cogito , o solipsismo versão forte detém-se exatamente aí. Enquanto o filósofo francês duvida sistematicamente do mundo apenas para melhor recuperá-lo depois, o solipsismo forte argumenta que, se minha existência é a única certeza inquestionável que possuo, então tudo o mais, inclusive as outras pessoas , não passa de um produto da minha mente.

Ninguém consegue sustentar esse ponto de vista extremado durante muito tempo sem cair em graves contradições, e certamente não é Heinlein quem pretende fazê-lo. Mas, de tempos em tempos, a idéia parece balançar tentadoramente diante de seus olhos, como em algumas passagens de O Gato que Atravessa Paredes . Por vezes, Heinlein dá a impressão de acreditar que é a única consciência verdadeira do universo. Nesse caso, todos nós, seus leitores, críticos, admiradores e detratores, não passaríamos de fruto de sua imaginação de autor, personagens de um livro que ele continuaria escrevendo mesmo depois de sua morte.

São Paulo, 17 de setembro de 1991