MAR DE JANEIRO II

Adriana Simon

Rio de Janeiro, 19 de abril de 2013

 

 

                                                       Querido Pai,

 

        Escrevo com saudades para te dizer que estou bem. Diga para mamãe não se preocupar, e que estou morrendo de saudades da comida dela. Escrevi várias cartas, mas só agora estou tendo condições de enviar uma.

        A elevação no nível da água aconteceu tão subitamente que os cariocas se lembraram do tempo em que a Cidade Maravilhosa ficava constantemente alagada, por isto todos aqui chamamos esta catástrofe mundial de "a grande enchente". Pensando bem, nós merecemos. Poluímos tanto do nosso planeta, que foi isto que ele nos deu em troca.

Os três primeiros meses após o acontecimento foram um tanto complicados. Meu apartamento no quinto andar ficou totalmente inundado logo nos primeiros momentos da enchente. Depois, a inundação chegou até o décimo andar do meu prédio. Estou morando com Amanda, minha noiva. Por sinal, devo minha vida a ela, já que no momento da catástrofe estava em seu apartamento assistindo a um filme no vídeo. Desde aquele dia estou morando aqui. O apartamento, que ficava no décimo primeiro andar, é localizado em ponto mais alto que o meu e agora equivale a um quarto andar. É nestas horas que vale à pena morar em um apartamento alto.

        No começo era complicado sair, mas com a solidariedade de todos conseguimos melhorar muito as coisas. Na hora da necessidade, sabe como é que é, ou as pessoas matam umas às outras, ou se ajudam. Por enquanto estão todos se ajudando. Sabe-se lá o que acontecerá no futuro. Como o nível da água estabilizou entre o sexto e o sétimo andar, transformamos o sétimo em térreo, derrubamos uma parede de acesso ao corredor, e agora podemos tranqüilamente fazer uso das escadas. Pessoas que tinham parentes se mudaram para lugares mais secos. Muitos se foram. Gozamos de uma certa segurança, já que os ladrões hoje se preocupam mais em recolher os pertences abandonados por seus donos, do que em tirar o pouco dos que ficaram. Além disso ganham uma grana razoável vendendo comida para gente, ou trocando coisas conosco. Temos um outro ponto a favor, somos considerados por alguns como escolhidos por Deus. Costumam chamar os bairros alagados de Mar de Janeiro e os habitantes, de renascidos. Na verdade, com tudo afundado, o Cristo Redentor está mais baixo, e realmente nos sentimos um pouco mais perto de Deus.

        Pouco tempo após o dia da enchente, um prédio ao lado do nosso desmoronou arremessando entulhos contra o nosso. Um pedaço grande do que antes deveria ser uma viga entrou pela janela, atravessando o nosso quarto e caindo sobre nós, enquanto dormíamos. Eu fiquei só um pouco dolorido. Uns arranhões, uns hematomas, e nada mais. Amanda não teve tanta sorte e quebrou sua perna no acidente. Por isto ainda estamos aqui. Consegui trazer um médico para engessar a perna dela, mas agora fica difícil para ela se locomover. Daqui a um mês ela vai tirar o gesso, e então iremos para aí. Nunca senti tantas saudades de Itatiaia. Aí, nessas alturas, nada deve ter mudado, não é?

        Estou conformado. Também, não posso reclamar. Agradeço a Deus por ter salvo a minha vida. Para Dadá (é assim que ela gosta de ser chamada), foi tudo muito pior. Seus pais haviam ido a um supermercado, e morreram no caminho de volta. Amanda ainda ouviu seus berros pelo celular, quando sua mãe ligou do engarrafamento. Seu irmão, Arthur, se salvou por pouco. Conseguiu chegar nadando naquele dia, e entrou içado pelo quarto andar. No dia seguinte a água já estava no sexto. Agora, moramos os três aqui. Muitos não voltaram mais, por isso, as pessoas dos andares inferiores que estavam desabrigadas ocuparam os superiores. O pessoal do quarto andar agora está no décimo segundo, ou melhor, quinto do nosso prédio que antes tinha dezesseis andares.

        A catástrofe foi considerada (claro!) calamidade natural e não recebemos nenhum prêmio do seguro. De vez em quando o Exército manda víveres para nós. Só agora estão mandando embarcações para recolher as pessoas. Com todas as cidades litorâneas alagadas, está tudo uma confusão. Tem muita coisa que precisa ser consertada, centrais de energia, de comunicações... Muita gente morta, desaparecida...

        Eu, claro, estou desempregado, já que o aeroporto Santos Dumont está destruído novamente. Primeiro foi o incêndio, e agora a água. Ele está literalmente afundado. Mas arranjei um outro emprego. Com a ajuda e a aparelhagem de Arthur, aprendi a mergulhar. Nós dois passamos o dia mergulhando atrás de jóias, metais preciosos, comida enlatada, e quaisquer coisas que achemos úteis. Outro dia achei um faqueiro de prata com detalhes em ouro, e foi a maior festa. Troquei com os cambistas por 1 roupa de neoprene, alimentos, curativos e remédios, além de algumas coisinhas para Amanda. Sabe como são as mulheres: mesmo sem poder andar, ela quer se enfeitar. Esses cambistas ganham muito bem. Alguns que moravam no morro conseguiram cercar um local, aterraram com areia, e fizeram uma nova praia. Agora cobram ingresso e tem muito turista que vem visitar. Carioca tem mesmo jeitinho para tudo.

        O transporte por aqui é feito de acordo com as condições de cada um. São usados barcos, jet-skies, botes infláveis, caiaques, pranchas, pedaços de madeira ou de isopor, e qualquer coisa que bóie. O bondinho, movido à energia solar, ainda funciona, e agora é uma espécie de trem de carga, sendo bastante utilizado para trazer madeira seca do alto do morro. Ou mesmo para tentar relembrar os velhos tempos. Na verdade, não costumamos sair muito, a não ser para pescar (é assim que nos referimos aos mergulhos a procura de objetos).

        Sentimos falta de muitas coisas, de nossos amigos, de nossos pais, das nossas coisas, da nossa vida, de luz elétrica, dos computadores,...

        Já vasculhei todo meu apartamento, mas consegui salvar pouca coisa. Diga a mamãe que consegui pegar o santinho de ouro que ela me deu. Antes eu não o usava, com medo de ser assaltado, mas agora não o tiro do pescoço. Sempre economizei, guardei tanta coisa com medo de ser roubado, de gastar, de perder, de estragar,... E agora tudo se foi, num piscar de olhos. E fico pensando... Para que a gente guarda tanto, se mais cedo ou mais tarde vamos ficar sem? Devia ter dado aquele relógio de bolso do vovô para o Ricardo já que ele queria tanto. Nunca usei, nem nunca deixei ele usar, e agora se foi. Mande desculpas e um forte abraço a ele. Bem, não adianta se lamentar. Agradeço a Deus todos os dias, por vocês estarem bem, longe, sãos e salvos.

                                                       Com saudades,   Rodrigo.

        Amanda dobra a carta e a põe de lado. Vira-se um pouco e sente sua perna doer, "é melhor do que não sentir nada", pensa ela, sabendo que seria por pouco tempo. Aonde a fratura é exposta, mosquitos pairam. Ela, desanimada, faz um gesto para afastá-los.

        — Obrigada mais uma vez, Dadá — agradece Rodrigo, deitado sobre uma velha cortina que faz a vez de um colchão. Suas mãos tinham sofrido sérias queimaduras e desde então jaziam enfaixadas, por esta razão, contava com sua noiva para escrever suas cartas.

        Amanda não responde. Limita-se a colocar o papel em um envelope usado e endereçá-lo, sob o olhar atento de Rodrigo.

        — Quando você vai colocá-la no correio?

        — Hoje a tarde — responde de Amanda. Sua garganta doía e era com esforço que falava.

        Rodrigo observa, até que o cansaço e a febre o vencem novamente e ele se põe a dormir. Amanda olha para ele carinhosamente. Arrasta-se pelo aposento até uma caixa de papelão de onde tira um pedaço de pão velho que já estava sendo devorado por uma barata. Seu estômago dói, e aquele pão lhe dá um certo alívio.

        Aproxima-se de um buraco na parede, por onde joga a carta. Pelo mesmo vão, pode ver a alguns metros abaixo, o papel boiar na água suja e desaparecer na correnteza. Rodrigo se mexe em seu leito, e ela olha em sua direção constatando que ele continua a dormir.

Já havia tentado convencê-lo que não adiantaria escrever, que não havia correio nem nenhum meio de entrar em contato com seus pais. Todas às vezes que havia insistido no assunto, ele perdera o controle, chegando até mesmo a colocar fogo no aposento que residiam e se ferindo gravemente. No momento seguinte ele esquecia, ou melhor apagava de sua mente. Era sua maneira de acreditar que havia esperança, se enganar para continuar a viver. Melhor assim, pois ela já não tinha mais nenhuma.