NOTA SOBRE JURASSIC PARK

O artifício ideológico por excelência, aprendemos com Barthes, consiste em apresentar os fatos sociais como se fossem leis da natureza, transformando a contingência em necessidade e elevando o fruto de um processo histórico específico à categoria de universal. Não é difícil ver como esse processo opera em Jurassic Park . Na história do filme, adaptada do romance homônimo de Michael Crichton, um magnata do show business utilizava o conhecimento científico e os recursos tecnológicos para recriar minuciosamente os extintos dinossauros e explorá-los comercialmente. Como seria de esperar, a natureza ultrajada se vinga e os dinossauros destróem o parque - primeiro passo, como se soube depois, para a conquista do mundo. Agora, comparemos esse esquema à situação do próprio Steven Spielberg enquanto diretor do filme. Quem é Steven Spielberg? Um dos mais bem-sucedidos diretores e produtores do cinema americano contemporâneo. Seus dinossauros foram modelados por computadores de última geração, utilizando software especialmente desenvolvido para esse trabalho. A equipe técnica levou em consideração as pesquisas mais recentes da paleontologia a respeito dessas criaturas, sua constituição física, seus hábitos alimentares, maneira de se movimentar, etc. Portanto, o que é Spielberg? Um magnata do show business que utiliza o conhecimento científico e os recursos tecnológicos para recriar minuciosamente os extintos dinossauros e explorá-los comercialmente. Se existe um alter ego do diretor em Jurassic Park , é John Hammond, que começou sua carreira montando circos de pulgas, como Spielberg com seus filmes familiares, e terminou dono de um império de entretenimento. Talvez por isso que o Hammond do filme não morra, ao contrário do que acontece no romance original, onde seu homônimo é um dos pecadores nas mãos de um deus zeloso travestido de Leviatã.

Outro personagem que sofre uma transformação semelhante do livro para a tela é o matemático Ian Malcom, irritantemente vivido por Jeff Goldblum - que se especializou, aliás, em interpretar cientistas malucos, haja visto A Mosca e Independence Day . No caso de Malcom, chegamos a lamentar profundamente que ele seja salvo pelo diretor. Afinal, apesar de sua pose "moderninha", ele é o personagem mais reacionário do filme: paradoxalmente, em se tratando de um matemático, ninguém fala tanto sobre o dedo de Deus e as leis da natureza quanto Malcom. Isso não combina com sua profissão, um matemático especializado na teoria do caos, já que poucas pessoas são tão conscientes do caráter meramente estatístico das chamadas "leis naturais" quanto os matemáticos, sobretudo os especializados na teoria do caos. Mas quando o personagem de Goldblum tenta explicar ao público o que entende por teoria do caos, compreendemos as razões dessa incongruência. Em que pesem todas as referências corretas aos slogans da moda - ele fala em atratores estranhos e efeito borboleta, sem se preocupar em explicar o que significam -, o que nos é apresentado não é a matemática do caos, mas uma distorção tão grave que chega mesmo a inverter seu sentido. Se Crichton - que também assina o roteiro - tivesse mesmo lido o livro de James Gleick sobre o caos (como alega ter feito na introdução do romance), saberia que a matemática do caos é um conjunto de ferramentas lógicas que permite reconstituir padrões inerentes ao comportamento dos sistemas até então considerados aleatórios. Esses padrões são chamados de "atratores estranhos" porque, quando os sistemas caóticos são projetados num gráfico tridimensional, os pontos do gráfico dão a impressão de serem atraídos por determinadas freqüências. O padrão formado pela interação entre os componentes do sistema e os atratores estranhos pode ser descrito em forma de equações. Paradoxalmente, o que a matemática do caos demonstra é que o caos não existe : o comportamento caótico reflete padrões que podem ser racionalmente compreendidos. Essa compreensão, se não elimina a imprevisibilidade inerente aos sistemas caóticos, permite contorná-la. Mas parece que Ian Malcom não sabe disso. Para ele, a matemática do caos é uma forma sofisticada de se traduzir um clichê: não se pode pensar em tudo.

Nada disso teria a menor importância se não fosse o componente ideológico. No máximo, se poderia acusar Crichton de ignorância ou, pelo menos, desleixo na pesquisa. Só que as coisas não são tão simples. Uma olhada atenta faz notar que as distorções perpetradas pelo Parque dos Dinossauros (o filme como o livro) são tudo, menos um inocente mal-entendido. Notemos que seus principais alvos são a tecnologia ("Odeio computadores" é a primeira frase do protagonista) e a engenharia genética (pelos motivos de sempre: o homem não deveria brincar de Deus, as leis da natureza são sagradas e assim por diante, ad nauseam . Todos esses lugares-comuns comparecem no filme, a maioria pela boca dos cientistas). Isto é, de instrumentos que permitem ao ser humano interagir com processos que até então eram considerados naturais. A tecnologia permite remodelar o mundo, a engenharia genética permite remodelar a vida. Num certo sentido, que seria preciso aprofundar, o que eles fazem é historicizar a natureza . Doravante, nada mais é natural. Com a suspeita mais grave de que talvez nunca tenha sido natural - no sentido de algo independente da ação dos seres humanos. Ocorre que historicizar a natureza é exatamente o oposto do artifício ideológico de naturalizar a história. O que a ciência e a tecnologia fazem é jogar nas mãos do homem a responsabilidade não só pelo seu próprio destino, mas também pelo de seu meio-ambiente. Confrontadas com essa responsabilidade, as pessoas teriam de evoluir até se mostrarem à altura dela. Teriam de questionar suas próprias motivações, atitudes e intenções ou, nas palavras de um filósofo injustamente fora de moda, seriam compelidas a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes. Mas isso dá muito trabalho e, além disso, podemos não gostar do resultado. Por exemplo, não tenho muita certeza se moralizar um produto criado com a única intenção de arrecadar dinheiro seria considerado eticamente aceitável. Principalmente se considerarmos que esse produto é o resultado daquilo mesmo que finge condenar em seu discurso. Não, é melhor deixar esse tipo de avaliação de lado. Banquemos a avestruz. Finjamos que a ciência e a tecnologia não existem ou, se isso se mostrar - como de fato se mostra - impossível, tratemos de nos esconder por trás de uma ideologia que mitifica a natureza e considera imutáveis os seus mandamentos. Escondamo-nos atrás do trono de Deus, daquele mesmo Deus do qual nos é dito na Bíblia que fomos feitos à sua imagem e semelhança, com o poder de criar e destruir o mundo. Como Michael Crichton e Steven Spielberg, façamos de conta que o caos existe.