O SINO DE SANTA INÊS

        No quente princípio de dezembro, entre um cliente e outro, resolvi escapar do ruído da cidade de uma vez por todas e visitar uma amiga que vivia num tranqüilo povoado de Santa Catarina, arremedando umas férias que não terminavam de começar. Deixei Porto Alegre atrás de mim, Narciso meridional e luminoso que se reclina incansável sobre o Guaíba, e mergulhei na tarde-noite do fim de primavera, conduzida por um ônibus mais ou menos cheio, cujo ar condicionado cheirava à chiclé de tutifruti. Felizmente, depois que o sol desapareceu e a temperatura caiu, enquanto o ônibus subia a serra, o motorista nos fez a gentileza de desligá-lo e a viagem pode realizar-se sem maior incômodo do que o do vizinho da frente, que deitou o encosto de seu banco até quase tocar-me o nariz, e pôs-se a roncar como um motor estragado. Felizmente, sou uma pessoa que tem por hábito acomodar-se ao incômodo que os demais possam causar —trabalho em casa e além de agüentar durante todo o dia as crianças do andar de cima correndo e gritando, agora tenho o prazer de ouvir como os obreiros executam uma reforma no andar de baixo. Deve ser a essas alegrias que se referem os estudiosos sociais, quando profetizam as vantagens de se poder trabalhar em casa, via ordenador.

        Passado Taquara, consegui adormecer —e sonhar que estava no meio do mar, tentando dirigir um minúsculo cargueiro à disel. Não sei por quanto tempo dormi, mas a ausência de movimento que fez com que me despertasse derepente. Fora da janelinha vi uma cidezinha quase tão minúscula quanto o navio de meu sonho, envolta em névoa e silêncio. As casas permaneciam fechadas, os jardins adormecidos e a escuridão mal quebrada pela lua minguante me fez pensar em alguma hora muito avançada da madrugada. As luzes das ruas eram escaças e tão distantes umas das outras, que mais pareciam ilhas em meio à um enorme e negro rio.

        O ônibus havia parado junto a um bar. Baixei para esticar as pernas e encontrei o motorista que examinava uma roda com um ar cansado. Vários dos passageiros já se encontravam por ali, vagando junto ao homem, ou entrando e saíndo lentamente pela porta iluminada.

        —Teremos de empurrar? — perguntei, sonolenta. O motorista sorriu sem nenhum humor.

        —Já foram chamar um mecânico — afirmou.

        —Qual é o problema?

        —A roda faz um barulho estranho — asseverou uma senhora de cabelos tão brancos como uma nuvem.

        —Bem, tomarei um café —comentei e sem esperar resposta, entrei no bar.

        Tratava-se de um autêntico bolicho e observei-o com uma curiosidade cansada. A barra era de madeira lustrosa e limpa, coberta dos círculos escuros que deixam os copos de cerveja e pinga quando estão molhados. Detrás dela havia uma prateleira com diferentes garrafas expostas, sobre as quais tiquetaqueava um recológio com mostrador de coca-cola. O espaço era amplo, e fresco, com mesas quadradas que se faziam acompanhar por um cinzeiro de plástico negro no centro e suas quatro cadeiras. Um pequeno espaço vazio denunciava eventuais bailarinos. O chão era de assoalho e estralava quando a gente andava sobre ele, ecoando sisudo pelas paredes caiadas de amarelo e beje, cheirando a fumo e cachaça, onde uma série de enormes janelas que se recortavam à cada dois ou três metros.

        Me estranhou que não houvesse nenhuma delas aberta. Todas permaneciam fechadas em muda negativa de sua função. Estavam reforçadas e as trancas eram enormes borboletas de ferro negro com uma aparência inexpugnável. Por um instante pensei que não eram parte da janela, que em realidade eram imensas mariposas de asas marrons, aveludadas, os corpos gordos revestidos de uma espécie de penugem repugnante, as antenas alertas ao menor movimento. Estremeci, mas não de frio, e preferi dar as costas à porta aberta do que às janelas fechadas.

        Apesar das janelas, o que realmente chamava a atenção no bolicho, era sua intensa iluminação. Absolutamente todas as luzes —e havia muito mais lâmpadas do que parecia necessário— estavam acesas. À princípio, pensei que era impressão minha, já que estivera dormindo, mas quanto mais tempo passava ali, mais me dava conta da profusa iluminação que jorrava à cântaros pela porta.

        —Um pingado, por favor — respondi ao camareiro que me indagara bruscamente, o que ia tomar. Reparei que parecia incômodo. Talvez já fosse hora de estar em casa, raciocinei. Nessas cidadezinhas do interior, as pessoas costumam dormir muito cedo. Quando pôs diante de mim a pequena taça, onde deixou escorrer algumas gotas de leite sobre o café escuro, percebi que tinha as mãos trêmulas. Sua testa, cor de cuia, brilhava sob as luzes intensas, como se estivesse suando. Tinha uma aparência sisuda e pouco gentil, acentuada pelas sobrancelhas grossas e o bigode escuro.

        —Como se chama este lugar? — interessei-me, concentrada em estudar o sério personagem que tinha diante de mim. Ele levantou uns olhos tão negros quanto a noite que havia do lado de fora e, se é possível, tão frios quanto ela.

        —Santa Inês.

        Voltei-me, surpresa. Quem respondera não fora o camareiro, mas um velhote de aparencia mirrada e com um tom inconfundível de bêbado na voz. Estava encolhido sobre uma cadeira, o olhar fixo no único copo que havia diante de si --vazio. Percebi que era o único cliente que não fazia parte do grupo de passageiros, e que os que ali se encontravam faziam uma volta quando tinham de passar pela mesa, situada justo diante do banheiro feminino. De sua parte não recebiam nem mesmo um olhar. Parecia não se dar conta do estranho movimento que ocorria ao seu redor, alheio a qualquer coisa que não fosse o pequeno copo branco.

        Sentei-me na mesa ao lado, observando-o com atenção. Apesar do ar acabado, não parecia tão velho quanto eu julgara à princípio. Tinha profundas olheiras e rugas, mas o que me dava aquela impressão desagradável era o tom macilento da pele. Iniciamos um curto diálogo que por parte dele se saldava quase unicamente com monossílabos. Soube que ainda não estávamos em Santa Catarina, e que aquela não era a parada costumeira do ônibus. Que era uma cidade pequena, pequeníssima, que aquela hora ia ser difícil encontrar um mecânico que se resolvera a vir, e que o mais recomendável seria seguir viagem com a roda fazendo ruído. E ao final, depois de responder às minhas perguntas com um sim e com um não, emitiu uma série de palavras que, à princípio, me pareceram o mais estranho que já ouvira em minha vida:

        —Esta hora é muito tarde. Já não vai querer vir. É pela igreja, sabe? Às doze, a igreja de Santa Inês sempre dá às horas. Mas só as doze. Não virá —pelo menos acho que não virá. Não, não virá. Depois, talvez, mas agora, agora não. E eu acho que deviamos fechar a porta do bar. Ou, talvez, baste estar com as luzes acesas.

        Pisquei aturdida.

        —Crê que o balconista vai nos por para fora? — indaguei estupefata. O homem me encarou sobre a mesa e pela primeira vez pude ver-lhe os olhos de um azul aguado e esgotado.

        —Claro que não!

        A indignação dele era tão grande, que tocava as raias da comédia.

        —Ah — fiz, com um ar que, esperava, era um ar de tranqüilidade. Mas o riso brincava em meu peito e me dei conta, com um sobressalto, que era um riso nervoso.

        Tinha um nó no estômago. Não poderia tomar o café, nem que disso dependesse a minha vida. Minha garganta se estreitava tanto que chegava à doer.

        —E por que não virá o mecânico? — perguntei.

        —Já disse. É pela igreja. À meia-noite soará o sino. Não é bom andar por aí à meia-noite. É muito tarde e as pessoas daqui dormem cedo.

        —Por causa da igreja ou por que é tarde? — me perdi. Ele olhou para fora, nervoso, enquanto acendia um cigarro. Aproveitei o momento para olhar o relógio da Coca-cola, que havia sobre as inúmeras garrafas do mostrador atrás do balcão. Era quase onze e meia. Por um instante pensei que meus olhos me pregavam peças, porque pensava que já era de madrugada, tão largos e enfadonhos me parecia a viagem e os sonhos que ela havia provocado.

        —Por causa da igreja e porque é tarde.

        Acenei com a cabeça como se soubesse com que estava concordando, mas não sabia e isso ficou claro quando me perguntou em tom confidencical:

        --Lembra da Lurdes?

        E antes que eu perguntasse um desastroso "quem?", prosseguiu, em um tom tão baixo que eu tive de esforçar-me para ouví-lo:

        --Lembro dela, como se a tivesse visto hoje pela manhã.

        Olhei para o balconista, que encolheu os ombros e fez um gesto junto à têmpora que deixou bem claro por onde iam as idéias de meu interlocutor.

        --Nunca saia de casa. Só para ir à igreja. Poder vê-la pela janela era tudo o que eu pedia quando me deitava pelas noites. Durante toda uma temporada, só havia uma palavra na minha cabeça, um desejo em meu coração e toda vez que eu olhava o mundo ao meu redor só via Lurdes.

        Inclinei-me curiosa, porque a medida em que ia falando, a voz desaparecia dentro dele, como que fugindo para algum abismo interior.

         

        Em 1949, Santa Inês eram três casa, uma igreja e um bolicho, e Lurdes tinha 16 anos. Diziam que estava comprometida com um moço da capital, mas o moço nunca vinha, Lurdes nunca ia e o carteiro --que serve de portavoz nestes românticos casos-- nunca vinha à casa da menina, de modos que bastava pensar um pouco para saber que tudo era mentira. Quem a inventara fora a mãe de Lurdes, convencida que estava de que sua prendada e virgem filha não tinha outra idéia na cabeça que a de esperar eternamente sentada por um milagre --já que nenhuma outra coisa poderia fazer com que um jovem da capital viesse dar naquele lugarejo e naquela casa em particular. E em que pensava Lurdes? Em nada. Tinha a cabeça cheia de vento, um vento fresco e louco, que cheirava à primavera e dezesseis anos. Passarinhos anidavam onde sua mãe pensava que havia pensamentos cheios de pureza. Não lhe interessava nem os bordados, nem as lições de etiqueta, nem a impossibilidade de um marido. Seus olhos vagavam pelas nuvens, pelos pintos da choca e ultimamente andavam acompanhando, cobiçosos, os gaúchos, quando passavam. Não cantava, porque não tinha ouvido nenhum, não lia os parcos livros, espalhados pela casa, nem mesmo a Bíblia, velhusca e empoeirada, porque mal sabia escrever seu nome. Tampouco lhe interessavam os números. Às vezes brincava com suas bonecas de louça, mas seus jogos eram cada vez mais selvagens e havia quebrado uma delas na semana em que chegou o Quichúa.

        O Quichúa veio do norte, num dia quente como o inferno. Carregava uma sela nos ombros. Jurava que seu cavalo tinha morrido há algumas léguas dali, mas tinha gente que dizia que nunca tivera cavalo. Arrastava atrás de si um carrinho cheio de instrumentos e grandes moldes, que por si só haveriam atraído a atenção de qualquer um naquele lugarejo. Parou no bolicho para tomar algo para a sede, e quando terminou espantou as pessoas que tinham se juntado em torno do carrinho, como que espanta um bando de moscas. Alguém lhe perguntou que fazia com tudo aquilo, e ele respondeu num espanhol que revirou entranhas e recordações, que faricava sinos.

        Mal ouviu-se isso e apareceu o padre da igreja, sem que ninguém soubesse explicar se estivera ouvindo atrás da porta, mesclado com a gente, ou se alguém o fora chamar. O caso é que a igreja de Santa Inês não possuia um sino. O dinheiro que a levantara deixara de manar quando morrera seu rico benfeitor, o seu Pastriano. Os herdeiros --a quem o padre se referia como "aqueles sem-vergonha de Porto Alegre"--, eram evangélicos e pouco dados às coisas do divino. Repartiram a fazenda do velho entre si ignorando completamente as insistentes cartas do padre de Santa Inês. E foi assim que com o passar do tempo, a alta torre de granito, nova em folha, ficou sem um sino de responsabilidade. Tinha, isso sim, uma campainha ridícula que desde baixo nem sequer se podia ver, quanto mais, ouvir o agudo timbre de lata.

        Assim que ao ouvir tal afirmação, o Padre Tenório lançou mão de toda sua capacidade de adulação e retórica que, ao fim e ao cabo, tinham sido os verdadeiros instrumentos para arrancar o dinheiro que construíra Santa Inês. Levou o estrangeiro à sua casa, prometendo pousada por uma noite e no espaço de poucas horas descobriu que o homem vinha fugindo de crimes terríveis que, segundo ele mesmo, o levariam diretamente ao Inferno --crimes, que, à bem da verdade não interessavam ao padre, que não fez nenhum esforço para conhecer os promenores. Dedicou-se dom Tenório a convencer-lhe que podia salvar-lhe das chamas terríveis; a prometer-lhe a salvação da alma; a garantir-lhe perdão. E tudo isso em troca de um único favor: um sino para Santa Inês.

        É verdade que o Quíchua levou um susto ao ouví-lo e ficou largo tempo em silêncio, meditando. Por fim, selou um trato: faria o sino primeiro, e o padre o absolveria depois. E por fim, partiria para uma nova vida em outros lugares, e deixaria ali, como selo definitivo de sua esperança por uma existência melhor, os instrumentos que utilizava. Concluídas as condições secundárias (onde montariam a forja, onde dormiria o índio e o que comeria), deram o trato por concluído e apertaram-se as mãos. E cada qual sonhou, naquela noite, com o que mais desejava: o padre com o bronzeado repique soando por todas as coxilhas, e o Quíchua com um esperançoso esquecimento.

        Contrataram a um dos jovens que habitualmente freqüentava o bolicho, para ajudar no trabalho duro. Era um tipo baixo e atarrancado, de origem italiana e índia --o que lhe valera o apelido de Gringo-- e o emprego pareceu fazer-lhe feliz. Em alguns dias os homens montaram a forja nos fundos da casa do padre, que, casualidade ou não, dava para os fundos da casa de Lurdes, onde um retângulo de vidro se abria ao seu quarto.

        Não se sabe quem viu a quem primeiro: se foi Lurdes que deu-se conta daquele dorso suado e maduro, daquelas mãos poderosas que se movimentavam em torno do fogo, como se fossem ambos a mesma coisa; ou se foi o Quíchua que observou como a menina trocava de roupa, quiçá inocente, quiçá nem tanto, diante da janela, sem se preocupar de, sequer, correr as cortinas. Não que se desnudasse completamente: isso estava reservado ao banheiro sem janelas, onde tomava banho uma vez por semana. Mas sempre levava, por baixo da camisola grossa com a qual dormia, um conjunto de algodão e rendas que revelava curvas e pedaços da pele alva. Em breve o Quíchua já não sonhava com a benção do esquecimento, mas com curvas e peles alvas. Mas, talvez, ao revés de tudo, quem viu primeiro a quem foi o Gringo à Lurdes trocando de roupa, muito antes que ali de pensasse em montar uma forja para fabricar um sino para o campanário de Santa Inês.

        Em questão de dias, Lurdes deixou de lado as bonecas de porcelana. Derepente, se tornou admiradora da impressionante arte de lavar a roupa. Derepente, já ninguém, nem a mãe, nem Janaína, a empregada, sabiam fazê-lo bem. Dedicou-se à passar horas e horas lavando os lençóis, o enxoval recém bordado, as grossas saias de lã, tudo lavado no tanque dos fundos, onde corria a água pura da sanga que passava ao lado da propriedade. Se molhava sem preocupar-se; molhava a saia que se colava às coxas --e por instantes pensava em grandes mãos tocando-as sem pressa-- e ao triângulo entre elas --e ali, talvez, sua própria água se misturasse à da sanga. Molhava a blusa e o tecido se pegava ao corpinho, e então quem pensava em mãos tocando curvas era o Quíchua. E depois de estender tudo e de espiar a forja pelas frestas entre os panos, a menina se metia no quarto, ao dizer da mãe, rendida de cansaço. Devia ser por isso de dormir fora de hora que não conciliava o sono pelas noites, que a mãe encontrava vagando pela casa com um ar de louca, e que uma vez a encontrara com a porta da cozinha meio aberta, em plena madrugada, um pé pronto para transpassar o umbral. Mas também é verdade que foi um verão largo e quente.

        De sua parte, o Quíchua se aliviava com tudo quanto era ovelha que passava ao alcance de sua mão. Tomava banhos noturnos na sanga fria e desejava com tal insistência que a menina também o fizera, numa coincidência impossível, que seu corpo aquecia a própria água, de modo que pela manhã as ervas das margens despertavam murchas e frustadas como o desejo morto. O Gringo, que passava desapercebido por Lurdes, e era praticamente ignorado pelo Quíchua, tudo via, tudo ouvia, mesmo aquilo que não se traduzia em palavras. Afundou num silêncio furioso e vingativo. Sujava de barro os lençóis recém lavados, quando ninguém estava olhando, deixava apagar o fogo da forja, misturava os papéis onde o índio ia desenhando o sino, rasgava rascunhos, queimava anotações. Santa Inês era muito pequena. Já não poderia comportar tudo aquilo, sem entornar o caldo.

        Não obstante o desejo distender o tempo como um elástico, o tempo em si mesmo permanecia intocável em seu caminhar. E assim, chegou o dia em que o bronze, o estanho e o cobre que o padre trouxera em longas peregrinações estava todo ali, e as formas de barro dos sinos estavam prontos para receber a massa ardente. Ao padre Tenório pareceram pequenas. Quase tanto quando as ridículas sinetas que seguiam tentando, inútilmente, fazer-se ouvir. O Quíchua explicou que não. Explicou que não era um fazedor de sinos normal, que era um pishtaco , e que tinha uma receita infalível para fazer com que o sino fosse ouvido até no céu fosse qual fosse seu tamanho. E que receita era essa? curioseou dom Tenório, demasiado tarde. Empalideceu o índio, gemeu baixinho, disse algo em sua língua materna e sacudiu a cabeça. Segredo de profissão, afirmou sem dar outra resposta. E o padre teve de contentar-se --pela primeira vez em muitos anos-- em ir dormir sem dar satisfação à sua curiosidade.

        Naquela noite, depois que tudo mergulhou no silêncio, o Quíchua se sentou perto da porta, esperando pelo Gringo a quem havia pagado por adiantado para vir ajudá-lo à verter o metal fevente dentro da forma. Sentou-se com um cigarro apagado na boca e com o grande facão, que era sua principal ferramenta de trabalho, sobre os joelhos. Dissera que trabalhariam pela noite porque era mais fresco, e era mentira. Mas era a sua última mentira, o seu último pecado, se o sino estivesse feito pela manhã e se não rachasse ao tirá-lo do molde e se não quebrasse ao soar pela primeira vez. E depois, a absolvição, a alma à salvo dos enxofres e gases infernais. Valeria a pena.

        Então ouviu aquele ruído leve na grama e um vulto parou junto à entrada do fole. Todos os seus nervos se tensaram e ele levantou-se muito devagar, tão devagar que alguém que estivesse olhando para aquele lado não o teria visto levantar-se, acreditaria que ainda estava agachado, e que apenas uma sombra se movera. E aquela sombra, que nem sequer respirava, avançou em silêncio. Avançou e esperou, e ouviu outra vez, como se pudesse ouvir o som dos músculos do rapaz movendo-se, talvez advertido pela escuridão. Deveria ter acendido a luz para tranqüilizá-lo, pensou, mas fazia muito tempo que usava a escuridão como aliada, e era a última vez, que fabricava um sino e não queria correr riscos. Talvez chegasse a pensar que o Gringo poderia também querer utilizar a escuridão como aliada. Talvez chegasse a imaginar que não fora o parco salário prometido pelo padre, o que trouxera o jovem tão prontamente ao trabalho duro. Talvez. Levantou a ponta do facão e esperou, esperou como se ainda estivesse acocorado com o cigarro apagado na boca, quase sem respirar, buscando ouvir por cima do pulsar enlouquecido das veias. Assim esperou.

        Então apareceu uma cabeça no vão da entrada e o índio moveu-se com rapidez. Agarrou a vítima pelo cabelo, estirou o pescoço e cortou-o limpamente. O sangue jorrou, mas ele havia instalado um comedor de porcos naquela altura, pela manhã, de modos que praticamente não sujou o chão. O corpo debateu-se com uma força absurda, depois foi perdendo força e finalmente terminou inerte nos braços do homem. O Quíchua acendeu o cigarro --finalmente --e então, sob a luz do fósforo, compreendeu que o rapazito não viera e quem viera, Deus sabia por que, era a menina da casa ao lado. Soltou o corpo com um gemido e por pouco não caiu sobre a forja. Sentou-se ao lado dela, sem entender nada, que diante de semelhante coisa, todo homem é ignorante. Suas mãos hábeis rasgaram a camisola, penetraram em seu sexo e escudrinharam seus segredos. E gemeu de desespero e terror, gemeu por sua alma danada, chorou como um menino.

        Lurdes ainda era virgem.

        Apesar do horror que o invadiu distender o tempo como uma borracha, o tempo em si mesmo seguia intocável em seu deslizar, e o tempo urge. Levantou-se, amarrou os pés do cadáver com uma corda que já tinha passado por uma roldana, e o pendurou sobre o curral dos porcos, até que dele saiu todo o sangue. Depois, levou-o até um gancho que tinha na parede da forja e o cravou firmemente pelos ombros. Só então acendeu o lampião.  

        Contemplou a morta com dor e pena. Que susto congelara aqueles olhos! Que medo sacudira por última vez sua boca! Que cheiro de desejo e sangue emergia de seu sexo, enorme e cabeludo, intocado por homens enquanto vivo, motivo de eterna danação enquanto morto. Cortou as carnes de Lurdes em finos e precisos talhos, justo onde a pele se transforma em carne, e debaixo dos pés grandes e firmes, depositou uma bacia de prata.

        Enquanto esperava a gordura escorrer do corpo da jovem, derretida pelo calor, avivou o fole e limpou o curral. Trabalhou a noite inteira, destilando gordura humana e recolhendo-a na bacia de prata. À princípios da manhã, quando o sol já vinha nascendo, queimou o que restara de Lurdes e seu desejo no forno e misturou a gordura com o bronze e o estanho. E ao final, quando já nascera a manhã, quando Lurdes era só mais uma lembrança, derramou o composto maldito na forma do sino. O Gringo não foi trabalhar naquele dia.

        Durante toda a semana em que esperou o sino esfriar, o Quíchua preparou-se para o pior. Buscaram pela menina por todos os lados, reviraram a sanga de tal maneira que o sangue nela derramado se mesclou com a lama e já não era possível distinguir o que fora Lurdes da terra que gerara Lurdes, assim como já não era possível distinguir o que fora Lurdes do sino que fabricara o Quíchua. Prenderam o Gringo, que foi encontrado bêbado junto à porta de um prostíbulo, em São Franscisco, mas depois o soltaram. A polícia foi até a forja, fez algumas perguntas e o índio, com a prática que o mundo ensina, mentiu uma e outra vez, mentiu até que mesmo ele acreditava que Lurdes jamais pisara na forja. Que jamais tocara seu corpo. Que jamais passara qualquer coisa que lhe perguntavam os policiais. E durante todo esse tempo, Lurdes estava ali, ou pelo menos uma ínfima parte de Lurdes, ali estava, repousando no molde, ao lado do sargento que lhe perguntava se a vira. Ali estava Lurdes, quando vinha o padre observar o progresso do sino, progresso que não era mais do que esfriar, como uma galinha que não perde de vista seus pintos, no processo de crescer. E ali estava ela, quando por fim se via sozinho e reavivava a forja para fazer a comida, e quando acariciava o molde como quem acaricia uma mulher, e desejava haver tido a luz acesa antes de brandir o facão, mais do que desejara qualquer coisa em sua vida.

        Finalmente, uma semana depois, abriu o molde. Veio o padre e meia dúzia de beatas e o índio teve de quebrar a forma diante de todos eles, e cada vez que derramava água nas cunhas que iam quebrar o barro, gemia. Quando finalmente o estranho ovo se rompeu e o sino surgiu, seu coração se fez pequenino no peito, porque da campana bronzeada e perfeita, escorria um suor dourado, e ao tocá-lo com um martelinho, o som ecoou belo e forte, retumbou dentro da forja, e nesse momento o lume quebrou-se.

        Então o índio soube que para ele não haveria salvação possível.

         

        O penduraram festivamente na torre, algumas semanas depois do desaparecimento de Lurdes. O engrinaldaram, houve discursos e uma comilança histórica. O evento mereceu, inclusive, a presença do fotógrafo do "Notícias de São Francisco", já que o jornal, filho do papel, se via incapacitado de reproduzir o repique bronzeado e alegre.

        Na hora de inaugurá-lo, entretanto, o sino se negou a cantar. O badalo, feito de idêntico material que a campana, batia inutilmente na matéria inerte e muda e o padre Tenório pensou que ia ter um enfarto. O Quíchua escapuliu-se antes de que alguém o pilhara, mas voltou à noite, quando todas as lágrimas de raiva do padre já havia secado e podia dedicar-se à escrever um sermão sobre a incompetência e os castigos infernais. O índio entrou sorrateiro na igreja e subiu ao campanário para admirar sua mais perfeita e danada obra, que cintilava leve e dourada. Para suplicar perdão, talvez, mas não à Deus.

        À meia-noite, derepente, sem aviso algum, o campanário deu as horas. Doze horríveis badaladas se derramaram sobre as casas e o bolicho. Doze medonhos golpes gritaram o grito que Lurdes no pode dar, todos eles ao mesmo tempo, o grito de medo, o grito de agonia, o grito de gozo que se perdera em sua garganta. O índio, ao lado do bronze, enlouqueceu. O padre caiu morto de susto. E Santa Inês nunca mais foi a mesma.

        —Lurdes nunca o perdoou. Ali segue o homem, esperando que ela se digne a tocar quando o padre puxa a corda, e não quando lhe dá na telha. Passa noite trás noite suplicando seu perdão, e quando chegam as doze ela soa e ele corre por Santa Inês e despedaça a quem encontra. Não come, não bebe, não dorme. Não respira. É uma sombra no campanário, esperando. Se fundiu à escuridão em que se escondia para matar, é parte dela, vive dela, como quem respira o ar. Dizem que a única maneira de fugir de suas garras é por-se na luz. Dizem que só alcançará o perdão que lhe prometeu o padre Tenório quando chegue o dia do Juízo Final.

        —Seu Beneto, pára de espantar a moça — ordenou o balconista, seco. Depois olhou para mim e fez o que parecia um sorriso. —Isso é história para boi dormir, dona. A tal da Lurdes fugiu com um caixeiro viajante, isso tá na cara. Foi o que a polícia disse.

        Afastei-me com um aceno de cabeça e me parei junto à porta, observando o motorista que, encostado no ônibus compartilhava conversa e perdia a paciência junto com outros três passageiros, por causa da demora do mecânico. A história que me contara o bêbado terminara de me despertar e aspirei profundamente o ar frio e leve, ar de noite serrana, de noite com estrelas, de névoa noturna e úmida.

        Observei que o vulto da igreja se erguia justo atrás do ônibus, a fachada principal mergulhada nas sombras vigiando o povoado mergulhado em sonhos. Precia uma construção de linhas duras e descomunais. Destacava-se por ser mais escura que a noite, maciça e ameaçadora, as esquinas afiadas como bordes de navalhas. A torre, quadrada e reta, recortava-se áspera, imitando almenas. E, não obstante a crueza das linhas, parecia que algo se enredava em torno dela, algo orgânico e sórdido que o olho não alcançava com a presença da luz, mas com sua ausência.

        Recuei um passo, e me coloquei completamente debaixo da forte iluminação do bar, como se obedecendo a um instinto. A claridade reinante ofuscou-me e, bendito seja Deus, a igreja desapareceu de minha vista.

        —Ei, vocês! — gritou o balconista junto à meu ombro, e eu pulei de susto, porque não o vira aproximar-se. Os quatro homens junto ao ônibus se voltaram para ele. — Vou servir um pouco de pinga por conta da casa. Querem entrar?

        Dois deles se apontaram com um sorriso, mas o motorista e o outro se limitaram a agradecer.

        —Um pouco de café? — gritou o homem, e o medo em sua voz era tão tangível que não cabia a menor dúvida de que estava assustado. Os que entravam se entreolharam, intrigados. O motorista encolheu os ombros e ambos aquieceram, dirigindo-se à passos largos para o bar.

        Os homens já estavam debaixo do umbral iluminado, quando eu e o balconista nos demos conta de que havia alguém dentro do ônibus. Era meu vizinho do banco, o que roncava como uma máquina estragada. Sentara-se e piscava atordoado, fitando a porta de luz, completamente confuso. O balconista fez um gesto de quem vai correr, mas então o relógio da igreja deu a horas.

        Era um som cavo e profundo. Não parecia vir do céu, onde ondulavam os sinos mas da própria terra, como se dela emanasse as vibrações sonoras. Ecoava na distância, refletia-se no horizonte, um som diabólico que sacudia fisicamente o edifício. As janelas tremeram em seus esquadros, como se suportassem o açoite de um vento poderoso. Eu e o homem recuamos juntos e os ocupantes do ônibus que agora se encontravam todos dentro do bar (com excessão do meu vizinho, que seguia fitando-nos como um bêbado pela janela do ônibus) olhavam a escuridão de onde vinha semelhante tempestade tentando ver mais do que a noite revelava. O balconista gritava algo ao meu lado, mas o som, o terrível som do poderoso sino, devorava todo outro som que pudesse existir. Por doze vezes o badalo extraiu do campanário aquele punho sonoro e com ele golpeou, doze vezes, doze enfurecidas vezes, a face da terra.

        Em meio aquela tormenta, vi, ou acreditei ver, algo que até hoje não pude explicar muito bem. Era como um vulto humano, desnudo e corcunda, que andava arrastando as mãos no solo, mas a tal velocidade que era difícil vê-lo de fato. Tinha uma cabeça deforme e grande, e movia-se nas sombras, evitando a luz, e se era real, felizmente não lhe vi a cara. Tive a impressão de vê-lo entrar no ônibus e andar rápido e decidido, em direção ao meu vizinho de banco, mas os vidros do carro vibravam desconsiderados e não se podia ver muita coisa. Fiquei com a impressão de ver o homem agitando as mãos, mas pode ser que meus olhos me pregassem uma peça.

        Em algum momento, a última badalada calou-se, e o silêncio da noite abateu-se sobre nós — o enorme e profundo silêncio da noite. E por último, como viajantes vindos de muito longe, começaram a retornar o cantar dos grilos, o pio das corujas, aquele distante e intangível latido de um cachorro, e por fim, os soluços aturdidos do balconista que, de joelhos ao meu lado repetia sem cessar:

        —Acenda a luz, pelo amor de Deus, acenda a luz de leitura....

         

        Estivemos em Santa Inês durante todo o dia seguinte, e só pudemos partir perto das dez da noite, quando a polícia de São Francisco, município ao qual a pequena cidade estava vinculada, nos liberou, e o padre e algumas beatas terminaram de, gentilmente, limpar o interior do ônibus. Mesmo assim, durante o resto da viagem o carro inteiro fedia a sangue, um cheiro quente que vinha em golfadas e nos obrigava a abrir todas as janelas e meter a cabeça para fora.

        Alguém ou algo, havia destroçado o homem que fora meu vizinho de banco. O fizera a dentadas, ou com poderosas garras, o que levou a polícia a afirmar que se tratava do ataque de uma suçuarana, como se a essas alturas da extinção das espécies, semelhante explicação tivesse alguma lógica. E como se tivesse alguma lógica que o animal houvesse entrado em um ônibus, matado a um homem e saído tão tranqüila como havia entrado, entre uma badalada e outra do campanário enloquecido.

        Mas a medida em que o motor punha distância entre nós e a paróquia de Santa Inês, e toda vez que o cheiro do sangue emergia das paredes, do chão e das poltronas, eu recordava a história que me contara o bêbado e os gemidos do balconista. Estremecia de pavor ao recordar o som do maldito sino de Santa Inês e durante meses dormi com a luz acesa. Uma pequena luz de leitura. Apenas o suficiente para afastar as sombras.