ESTRANHAS VISÕES PERIGOSAS

Um Espírito está aqui, mas sob ele dois princípios contendem.

Philip K. Dick

Cheguei até aqui em parte me arrastando, em parte carregado pelo ímpeto desse delírio que nasce do sangue derramado à medida que tento caminhar. Não foi uma lança, claro, mas o ponto do flanco é o mesmo, uma ferida aberta de onde não vazou água, porém sangue o bastante para me enfraquecer a razão e trazer aos olhos estranhas visões perigosas, tanto mais estranhas e tanto mais perigosas devido à insidiosa sutileza com que se entrelaçam às percepções verdadeiras. Não posso jurar por cada pedaço de rocha, mas a montanha é real, o que posso deduzir pelo fato de saber que aqui haveria normalmente montanhas. Porém, da cidade com suas cúpulas luzentes, douradas e belas, estendendo-se pelos vales abaixo, nada há que me garanta existirem fora de meu cérebro. É onde suponho que residiam também os vultos que de vez em vez por mim passavam, posto que não apenas deixavam de me ajudar - o que, desde Kitty Genovese, tornou-se rotina - mas ainda recusavam-se a ceder à mórbida curiosidade de me olharem e se perguntarem como me ferira, até quando viveria e de que modo morreria. Porque não restam dúvidas de que vou morrer. O que vocês queriam, após esvair tanto sangue e perder minhas forças neste rastejar insensato? Não tenho um objetivo definido. Não tenho nada definido, entendam. Sei lá qual é meu nome. De onde vim? Se eu disser que não sei, ao menos nesse aspecto estarei emparelhado com todos os homens, que igualmente ignoram sua origem. Trago comigo algumas pistas. Tenho um IDskete, o que prova que venho de um mundo informatizado, pudesse lê-lo e conheceria minhas respostas. Bem, foda-se. Não se pode ter tudo. Eu não posso ter nada. É o bastante saber que um dia, onde quer que seja, tive alguma coisa, isto é, fui alguém que se definia por uma identidade mais concreta do que a linha escarlate que me faz as vezes de eixo cartesiano.

Deus, como estou cansado. Parece-me ter vindo de uma espaçonave sinistrada, vejo no fundo de meus olhos uma imagem de sua carcaça rebrilhando ao Sol, mas é um brilho igual ao das etéreas cúpulas que ora contemplo e pelas quais não ponho a mão no fogo. É engraçado, às portas da morte e minha principal dúvida é saber se aquela Kadath lá embaixo é ou não uma alucinação. Queria chegar até lá e averiguar, seria ao menos uma certeza, mesmo que fosse a última.

Uma sombra move-se ao meu lado. Com esforço e alguns gemidos, viro a cabeça em sua direção. Não estou preparado para o que vejo. Sei, milhares de homens ao longo da história da humanidade e sabe lá quantos outros seres ao longo da história de outras coisas que não a humanidade já disseram a mesma frase ou seu equivalente. Entretanto, eu não estou mesmo preparado para o que vejo. É uma espécie de lagarta com rosto de palhaço, segurando com suas patas dianteiras o maior baseado de que já tive notícia.

Seus olhos avermelhados me contemplavam com a expressão de quem contempla um país de maravilhas e, abrindo sua boca desdentada num sorriso, ela me ofereceu o cigarro.

- Devo? - perguntei. Acho que perguntei. Em todo caso, ela respondeu.

- O que você tem a perder?

Era verdade. Cambaleante, estendi a mão para ela e peguei o baseado. Levei-o aos lábios com uma atitude de reverência que me surpreendeu, quase como se soubesse que o fumo e eu provínhamos do mesmo mundo, de maneira que o que levava aos lábios era um elo de ligação com minhas origens.

E então, não havia mais dor. De fato, parecia nem mesmo haver mais ferida. Devolvi-lhe o cigarro e agradeci. A lagarta se despediu com um cordial aceno da cabeça e desapareceu sob uma fenda na rocha. Agora, eu conseguia ficar de pé bastante bem e preparei-me para andar até a cidade.

Neste momento, estou em suas ruas, cercado por seus edifícios e casas, envolvido por sua atmosfera. Os arranha-céus são construídos com grandes placas translúcidas de cor esmeralda, as ruas são pavimentadas com um asfalto amarelo, as calçadas quase brilham de limpas. A cidade ideal de uma quimera, cantarolou em mim a lembrança de uma peça infantil, é uma cidade de ficção científica: os prédios são feitos de esmeralda e as ruas, cobertas de ouro. Bem, aqui estou eu. Mas falta algo. Penso, repenso e descubro: faltam pessoas. Uma cidade precisa de habitantes, mas não se vê alma viva por aí. Não sou um grande especialista no assunto, mas presumo que também não haja almas mortas. Postes de luz desligados me dizem que a cidade dorme profundamente. Melhor averiguar. Entro num edifício que lembra uma repartição pública, até pelo vazio e silêncio que reinam em seu interior. Ando até o fundo do saguão, onde presumo que se encontrem os elevadores. Há apenas um, e nele deparo com o primeiro ser - creio que vivo - desde que cheguei à cidade. É um chimpanzé, miúdo, vestido de ascensorista, que me encara e pede o número do andar.

- Nove. - respondo ao acaso, sem nem sequer saber quantos andares têm o edifício.

Ele aperta o botão correspondente, a porta do elevador corre para o lado e a cabine começa a subir com um matraquear de evidente falta de lubrificação.

Quando o elevador pára, a porta se abre, revelando um longo corredor acarpetado há muitos anos atrás, porque o carpete mostra-se evidentemente gasto e um tanto quanto sujo. No fim do corredor, vê-se uma porta em cujo trinco está pendurado um aviso dizendo: "Não entre. Área interditada pelo olho público." Na lateral do aviso, em letras miúdas, lê-se: "Parte integrante da revista Homem-Aranha 2099 nº 4 - não pode ser vendido separadamente." Cuidadosamente, bato na porta com os nós dos dedos. Contrariando o aviso, uma voz responde:

- Entre.

Obedeço. Entro em um quarto pequeno e abafado, com as paredes cobertas de prateleiras repletas de livros de papel, presumo que verdadeiras antigüidades. Mas existe também um computador no canto, um modelo antiquado, diante do qual senta-se um homem baixo e magro, olhando-me com evidente curiosidade.

- É isso que dá a falta de inspiração. - ele diz, com um sotaque de ironia na voz. - Queria levá-lo para um daqueles mundos grandiosos de space opera , com vertiginosas batalhas contra espaçonaves inimigas... a propósito, foi numa batalha dessas que a tua nave explodiu... e acabei trazendo-o aqui. - deu de ombros, resignado. - Imagino que isso significa que a ficção científica não é mesmo a minha praia.

Não entendo o que ele diz. Não entendo o que ele é. Pergunto:

- Quem é você?

Ele pensa bastante, antes de responder:

- Pra você? Deus. Ou ninguém. Faz diferença?

Pego o IDskete no bolso de meu uniforme esfarrapado e aponto com ele para o computador:

- Posso lê-lo?

Ele ri.

- Pra quê? Eu posso dizer o que tem aí. Posso responder a todas as suas perguntas, como um oráculo. E, como um oráculo, não posso garantir a inteligibilidade das respostas. - Mas, depois, parecendo refletir melhor, diz: - Presumo, porém, que seja preciso manter uma coerência mínima no roteiro, não concorda?

Levanta-se e me oferece o lugar com a mão. Sento-me em sua cadeira, uma cadeira comum de armação de metal e estofamento coberto de couro sintético, com um design que há muito tempo, numa galáxia distante, pretendeu-se moderno. Introduzo o IDskete na ranhura do drive. Mando listar o diretório. Há um único arquivo, intitulado Estviper.doc. Digito: type Estviper.doc. O monitor, inacreditavelmente verde, exibe um monturo de lixo que parece interminável, só depois do qual começa o texto legível:

"Cheguei até aqui em parte me arrastando, em parte carregado pelo ímpeto desse delírio que nasce do sangue derramado à medida que tento caminhar. Não foi uma lança, claro, mas o ponto do flanco é o mesmo, uma ferida aberta de onde não vazou água, porém sangue o bastante para me enfraquecer a razão e trazer aos olhos estranhas visões perigosas, tanto mais estranhas e tanto mais perigosas devido à insidiosa sutileza com que se entrelaçam às percepções verdadeiras. Não posso jurar por cada pedaço de rocha, mas a montanha é real, o que posso deduzir pelo fato de saber que aqui haveria normalmente montanhas. Porém, da cidade com suas cúpulas luzentes, douradas e belas, estendendo-se pelos vales abaixo, nada há que me garanta existirem fora de meu cérebro. É onde suponho que residiam também os vultos que, de vez em vez, por mim passavam, posto que não apenas deixavam de me ajudar - o que, desde Kitty Genovese, tornou-se rotina - mas ainda recusavam-se a ceder à mórbida curiosidade de me olharem e se perguntarem como me ferira, até quando viveria e de que modo morreria. Porque não restam dúvidas de que vou morrer. O que vocês queriam, após esvair tanto sangue e perder minhas forças neste rastejar insensato? Não tenho um objetivo definido. Não tenho nada definido, entendam. Sei lá qual é meu nome. De onde vim? Se eu disser que não sei, ao menos nesse aspecto estarei emparelhado com todos os homens, que igualmente ignoram sua origem. Trago comigo algumas pistas. Tenho um IDskete, o que prova que venho de um mundo informatizado, pudesse lê-lo e conheceria minhas respostas. Bem, foda-se. Não se pode ter tudo. Eu não posso ter nada. É o bastante saber que um dia, onde quer que seja, tive alguma coisa, isto é, fui alguém que se definia por uma identidade mais concreta do que a linha escarlate que me faz as vezes de eixo cartesiano."

Desvio o rosto, sem continuar a ler, e exclamo em voz alta:

- Que porra é essa?!

O homenzinho no quarto sorri, divertido.

- Tua identidade. A única identidade que você possui, meu caro. Alguém rastejando ferido. Pretendia fazer uma coisa melhor, sabe esse papo de construção do personagem, com um nome prenhe de significação e algum tipo de biografia fictícia. Mas, como se trata de ficção científica, isso implicaria em criar um mundo próprio, com coerência interna, descrito nos mínimos detalhes e, pra falar a verdade, eu não tenho muito saco pra isso.

Acho que começo a entender o que ele está dizendo.

- Você me criou?

- Precisamente. - Pausa. - Quer dizer, até o ponto em que os autores criam seus personagens. Pela parte que me toca, você bem pode ser a personificação de algum complexo inconsciente. Nesse caso, eu seria apenas o teu biógrafo. - Outra pausa. Ele olha o relógio em seu pulso. - É um pouco cedo pra bebidas. Quer um café? Chá com bolachas?

- Um copo d'água, por favor.

Ele se levanta e sai. Fico olhando os títulos nas prateleiras. Dublinenses, O Caçador de Andróides, No Caminho de Swann, Um Estranho Numa Terra Estranha, Lolita ... Nenhum deles significa grande coisa para mim. Momentos depois, retorna trazendo a água que pedi, terrivelmente gelada, o que deixa o copo todo suado por fora.

- Obrigado. - agradeço, devolvendo-lhe o copo, que ele displicentemente coloca numa mesinha ao lado do computador. - A propósito, qual é o teu nome?

Ele hesita, parece não querer me dizer.

- O nome de uma pessoa é a expressão de sua essência. - Volta a se sentar em sua cadeira, defronte o computador. - Sabe, os povos primitivos não divulgavam seus nomes, eles achavam que possuir o nome de alguém era possuir sua alma. A gente não leva mais a sério essas crenças, rotula como superstição. E é, claro. - Aqui, seus olhos tornam-se mais incisivos. - Mas não quero entregar minha alma nas mãos de um personagem. Me chama de Fiat Lux. É um bom pseudônimo, exprime o fato de que os mundos que eu crio são criados pela palavra. E também significa que eu sou meio cabeça-quente.

É difícil acompanhar seus raciocínios. Mesmo daquilo que entendo, não estou convencido. Não acredito que eu não passe de obra sua.

- Meu deus, um cético. - debruça-se sobre o teclado, escreve com rapidez, ignorando completamente minha presença. Encara-me com uma expressão sarcástica e diz: - Acho que os caras que derrubaram a tua nave te descobriram.

Com efeito, fora do quarto ouve-se um barulho de gente se aproximando. Espio pela fresta. Duas grandes figuras negras estão vindo pelo corredor, inteiramente cobertas por seus trajes. Estes são compostos por um macacão inteiriço de tecido plástico escuro, uma esvoaçante capa de pano e um capacete com ar de máscara demoníaca.

- Você tem uma arma? - pergunto.

Ele sacode a cabeça numa negativa:

- Vai ter que contar com a criatividade. - Em seguida, acrescenta: - Com a minha criatividade.

Procuro com que me defender pelo quarto. O exame mostra-se desanimador. Além das centenas de livros, vejo apenas uma mesinha com um rádio-gravador desligado, um pufe cor de carne e, sobre este, um antigo ventilador verde, de metal, direcionado para o computador.

- Posso...? - indago, mostrando o ventilador.

- À vontade. - diz Lux.

Escondo-me atrás da porta. Eles entram, e agem como se ignorassem totalmente a presença do escritor. Rapidamente, e com toda a força de que sou capaz, assesto o ventilador na cabeça do primeiro. A pancada provoca um ruído seco. Ao mesmo tempo em que o alienígena desaba, lanço-me contra o segundo, esmurrando-o na barriga. Ele se dobra em dois, dando margem a que eu lhe acerte uma joelhada no rosto mascarado.

- Não achou eles meio fracos? - pergunta Lux.

- Sorte minha.

- Não se trata de sorte. Eu quis assim. Poderia tê-los feito mais fortes. - Examina-os aprovadoramente. - Imaginei que uma raça com dependência maciça de tecnologia obrigatoriamente teria que ter pouca força física. Mas nada garante isso. - Apontou a cabeça deles com o queixo. - Anda, tira a máscara deles. Você vai achar interessante.

Agacho-me junto a um dos corpos e faço o que Lux disse. O rosto dos alienígenas é um cruzamento entre lagarto e abacaxi, com duas guelras do lado para completar o quadro. Seus olhos, enormes e globosos, não têm pálpebras.

- Existe um motivo para eles terem esses olhos. Monstros de olhos esbugalhados são uma venerável tradição da space opera . A gente tem que respeitar as tradições, não acha?

- De onde eles vêm? - pergunto, ainda agachado.

- Sinceramente, ainda não pensei nisso... Vejamos, como eu estou lendo um conto de John Barth chamado Perseíada , acho que eles se originam de alguma estrela na constelação de Andrômeda. Não sei qual, preciso consultar um manual de astronomia pra decidir.

Lentamente, Lux levanta-se de sua cadeira.

- O que mais me atraiu na ficção científica foi seu potencial para exprimir metaforicamente a condição humana. - Aproximou-se dos dois andromedanos caídos. - Os extraterrestres, por exemplo. São uma imagem perfeita para o caráter alienado das relações entre o homem e o mundo, para o fato de que a realidade sempre aparece à consciência como radicalmente estranha e ininteligível. Enfrentar um alienígena simbolizaria o confronto com essa alteridade absoluta. - Chuta a criatura mais próxima, displicentemente, e tanto ela quanto a outra desaparecem. - Mas não funcionou.

Continuo não inteiramente convencido. Admito, porém, que estou curioso.

- Por que não?

Ele suspira, resignado.

- Porque os leitores normalmente não estão interessados na condição humana. Eles querem é entretenimento, escapismo. Procurar subtextos filosóficos por trás da história que estão lendo nem lhes passa pela cabeça.

- E o que há de errado com isso?

A questão parece não preocupá-lo muito.

- De errado? Nada. Só que não é nisso que eu estou interessado. Prefiro histórias que, como diz Kafka, atinjam a cabeça do leitor feito um machado no gelo. Ou coisa parecida, não lembro a frase exata. Entende, histórias que o façam pensar, reavaliar a si mesmo e ao mundo.

- Não é muita pretensão, não?

Lux sorri, deliciado.

- Claro que é. Você não sabia? É disso que vive a literatura: de colocar pra si mesma um alvo inflacionado e passar o resto do tempo tentando em vão atingi-lo.

De súbito, lembro-me da lagarta no deserto.

- Sabe o que eu acho? - sugiro. - Acho que este quarto, você, nada é real. Deve ser apenas uma alucinação provocada pela maconha.

- Ah, aquilo . - retruca Lux, sem muito interesse. - Foi apenas uma provocação pros leitores mais puritanos, aqueles que se arrepiam quando ouvem falar em sexo, drogas e rock'n'roll. A ficção científica anda cheia deles. Não é nada que faça diferença.

Um silêncio constrangedor cai entre nós, agitando-se no ar que nos separa como uma massa tentacular, amebóide, encimada por um arremedo de rosto humano que não chega a se fixar. É Lux quem destrói a massa.

- Na outra ponta do corredor tem um quarto. Vai até lá.

Obedeço, não tenho inteira certeza dos motivos. A porta do quarto está encostada. Abro-a, devagar, com receio de que haja outros andromedanos à minha espera. Outros andromedanos há, mas não à minha espera. O quarto é uma espécie de masmorra, onde três alienígenas se ocupam em torturar uma garota. Seus trajes são tão sumários que quase não dá para descrevê-los, os longos cabelos loiros escorrendo sobre os seios nus. Ela está acorrentada à parede e seus algozes se revezam para aplicar em sua pele clara como leite uma caixa que, ligada por fios ao braço dos andromedanos, arranca dolorosas contorções da mulher e arrepios de prazer da carranca esbugalhada que ostentam sobre o pescoço.

Queria que Lux não tivesse feito os outros dois inimigos desaparecerem. Eu poderia ter me apropriado de suas armas. Enfim, não adianta muito pensar no que podia ter feito. Presumo que, uma vez mais, vou ter que me virar como der.

Do meu lado esquerdo tem uma porta aberta. É um banheiro. Lá dentro, encontro um cesto com algumas roupas amarfanhadas pelo chão, um cesto de lixo abarrotado com papel higiênico e um armarinho contendo produtos de limpeza e um frasco de álcool. Isso me dá uma idéia.

Volto até o quarto de Lux.

- Tem fogo?

Ele faz que não.

- Desculpa, eu não fumo. Meu pai, sim. Infelizmente, ele está trabalhando. Contudo, imagino que lá embaixo, na cozinha, você possa encontrar uma caixa de fósforos.

Desço as escadas. O elevador que me trouxe até aqui desapareceu. Passo por uma sala, entro na cozinha. Percebo que estou numa casa, em vez do prédio que supusera até aqui. Encontro a caixa que ele indicou ao lado do fogão. A marca dos fósforos é Fiat Lux . Com cuidado para não fazer barulho, pego o álcool e uma meia suja, com a qual improviso uma mecha, embebendo-a no líquido. Mergulho a mecha no frasco. Chego até a porta da masmorra e risco um fósforo. Atiro o frasco em chamas sobre os andromedanos. Apenas um deles é atingido, rolando pelo chão à medida que o álcool e o fogo espalham-se por sobre seu corpo. Ele solta gritos pavorosos, que ecoam pelo ar como os urros e uivos dos demônios da noite. Aproveitando a confusão instaurada, pulo sobre um segundo andromedano e o nocauteio, enquanto o terceiro tenta ajudar seu companheiro caído. Pego a arma que o extraterrestre que acabei de vencer guarda providencialmente no cinturão e dou cabo do último alienígena.

No mesmo cinturão, estão as chaves da corrente. Liberto a moça que, grata, atira-se ao meu pescoço. Beijamo-nos. Seus lábios carnudos têm um gosto doce e a língua sabe a iguarias exóticas de mundos distantes.

- Sou Léa, princesa de Shariar. - ela se apresenta, numa pausa entre dois beijos.

- É um prazer conhecê-la, Léa. - gostaria de lhe dizer meu nome, mas não tenho nenhum.

Percebo que Lux está parado à porta do quarto, observando-nos.

- Essa é outra coisa que me incomoda na space opera . - afirma, indicando Léa. - A superficialidade com que ela trata as relações humanas. Claro que carreguei um pouco nas tintas pra que você pudesse perceber, mas na maior parte das histórias as coisas não se passam de modo muito diferente, não. Mocinho salva mocinha. Agradecida, mocinha trepa com mocinho. E todos vivem felizes pra sempre. Ou até que o Destruidor das Formas venha fazer o seu serviço, o que dá no mesmo.

Andamos os três até o quarto dele.

- Na vida real, meu anônimo personagem, você e Léa iriam se aproximando aos poucos um do outro, num processo lento e por vezes doloroso de reconhecimento recíproco. Momentos felizes alternariam com conflitos sérios. Às vezes, você a magoaria, às vezes ela o feriria. Sua principal preocupação seria criar um espaço no qual ambos pudessem conviver, dar carinho um ao outro, evitar a armadilha da mútua destruição assegurada. Mas não na space opera , claro. Na space opera , o herói está ocupado demais com seus feitos mirabolantes e maravilhosas proezas pra se importar com outro ser humano.

Estalou os dedos e Léa sumiu de meus braços.

- Pra onde ela foi? - quero saber, ligeiramente irritado.

- Engraçado, você não reagiu assim quando os dois andromedanos sumiram. - ele ri. - Se você a quer, terá que conquistá-la. Entretanto, terá que conquistá-la como as pessoas de verdade fazem, despertar o interesse e a simpatia dela, avivar seu desejo, provocar sua paixão. E, claro, nesse meio tempo, ela estará fazendo o mesmo com você. Nada de submissa princesa assistindo passivamente enquanto você derrota monstros de outro planeta com sua inteligência superior e seus músculos privilegiados. Por falar nisso, esse físico de Conan também está sobrando.

Quando ele fala, me torno menor e mais magro.

- Ótimo, agora você parece um ser humano real.

- Onde está Léa?

Ele aponta para a janela do quarto.

- Em algum lugar no vasto mundo lá fora. Se você quiser, eu o levarei até ela. Mas Léa não se lembrará de você, e não será mais uma linda princesa seminua.

- Se eu quiser... Quer dizer que eu tenho escolha?

Estamos descendo as escadas. Lux se mostra surpreso.

- Claro que tem! Basta dizer e eu te devolvo ao teu deserto e ao teu ferimento no flanco, à tua espaçonave caída e à tua miragem de cidade. E você será, para sempre, o heróico personagem de uma história inacabada.

- Você chama isso de alternativa? Que espécie de vida é essa, nas páginas de uma obra de ficção?

Lux pára em frente à porta da sala.

- Não seja ingênuo, meu caro. Você sempre será um personagem de ficção. Não pode ser outra coisa. Não pode querer ser outra coisa. Tua escolha não é essa.

- Qual é, então?

- É a escolha entre ser o mocinho de um mundo grandioso, mas ilusório, onde as coisas só dão certo pra você porque os leitores sabem que o mocinho não pode morrer... ou ser o habitante de um mundo igualmente fictício e de conquistas menos retumbantes que, porém, vão ser efetivamente suas , efetivamente conquistas , já que você conviverá de perto com a possibilidade de errar, de sofrer e mesmo de morrer.

Enquanto fala, Lux abre a porta.

- Não sei onde essa porta vai dar. - diz. - Isso é você quem vai determinar.

Fica esperando que eu saia. Não sei se a decisão é realmente tomada por mim ou escrita por ele no computador lá de cima. Talvez ambos. Talvez nenhum. Pode ser que eu tenha um inconsciente que escape até mesmo à onipotência do meu autor. Pode ser que meu autor nem seja onipotente de verdade, que ele não controle sua ficção, mas apenas a registre, semelhante um rei que só ordenasse a seus súditos que fizessem o que eles fariam de qualquer forma. Eu saio.

A luz do Sol da tarde atinge meus olhos em cheio, fazendo-me piscar. Quase em frente à casa de Lux, há uma praça na qual algumas crianças jogam bola. Cria-se um impasse entre elas, sobre se uma falta foi ou não cometida, e o impasse imediatamente vira discussão. Um vira-lata levanta a perna traseira para mijar num poste e segue em frente, preparando-se para avançar contra os automóveis que passam. Quando ligo meu carro, o cachorro se põe de sobreaviso, mas o caminho para meu apartamento vai na direção contrária, e ele fica olhando com um ar de desapontamento enquanto me afasto.