Derby

 

Marcello Simão Branco

 

    

Chegou o dia do grande jogo: Palmeiras x Corinthians. Uma partida há muito esperada, pois ambos não decidiam um título há dez anos e, além disso, não venciam um campeonato paulista há mais de duas décadas.

Mas isso importava na verdade para muito poucos. Aos últimos torcedores do século XX que ainda viviam neste distante e transformado ano de 2100. Torneios regionais não mais existiam de forma independente, sendo disputados simbolicamente dentro do campeonato nacional de futebol.

José Gagliardi era um dos velhos palmeirenses sobreviventes. Com 124 anos, ele se lembrava do saudoso Parque Antárctica, o mais velho estádio da cidade (que virara um shopping center há uns trinta anos), onde rolaram jogadas inesquecíveis, como as do ataque de 1996: Djalminha, Rivaldo, Müller, Luisão, que conseguiram a façanha de serem campeões com a melhor campanha da história do futebol profissional. Esta era a marca que o deixava mais orgulhoso, pois se mantinha insuperável até hoje.

Vestido a caráter, com a camisa verde, calção branco, meia verde, e sua enorme bandeira para dar aquela sorte, lá foi o último palmeirense do século XX torcer por seu ‘Palestra’ na casa do último corintiano, o seu Fernando.

Como? Um palmeirense indo na casa de um corintiano pra assistir um derby decisivo?!

Ora, isso só poderia espantar a eles mesmos, remanescentes vivos de uma rivalidade há muito esmaecida neste século XXI, no qual o futebol se profissionalizou além da conta, deixando a emoção e as velhas rivalidades há muito esquecidas nas gerações que se seguiram. Até o nome ‘Derby’ ninguém mais lembrava, apelido tradicional cunhado pelo jornalista Thomaz Mazzoni nas páginas do jornal, A Gazeta Esportiva nos anos 50 do século anterior para o jogo de maior rivalidade do futebol paulista.

A lembrança resistia, no entanto, em torcedores como Fernando Gonsales que esperava ansioso pela vitória do Timão. Era a chance de sorrir de novo, depois de muitos anos na fila e de seguidas humilhações. O Corinthians não era mais a potência de outras épocas, popular ainda é verdade, mas um time de segunda categoria, lembrando os tempos do ‘faz me rir’, dos anos 60 do século passado. Puxa, até isso dava saudade... Torcida fiel? Só se for virtual, pois poucos, muito poucos vão assistir ao vivo no estádio as partidas.

E ele guardava  os ingressos dos jogos vistos no Pacaembu e na Fazendinha. O primeiro estádio virara um enorme piscinão levado a cabo pelos desvarios tresloucados do atual governador, bisneto de um grande corrupto do século passado, um político de ascendência árabe. E a Fazendinha fora arrematada em leilão, após o Timão perder sua sede, fruto de administrações pra lá de incompetentes...

José chegou com o hino do Palmeiras à toda no som de seu aerocarro: “Quando surge o alviverde imponente... no gramado em que a luta o aguarda...”

— Ou desliga esta porcaria ou não entra aqui! Exijo respeito! — Esbravejou Gonsales ao sair à rua para receber o palmeirense que pousava o veículo.

— Ora, deixe de ser invejoso, Fernando! Teu time não tem um hino e nem uma bandeira linda como essa! — Mostrava provocador o velho palestrino.

— Já estão transmitindo. Você chegou bem na hora!

— Vamos lá freguesão! Te dou dois de lambuja, porque o ‘Palestra’ vai fazer uns quatro hoje!

— Vai falando, vai falando! Com a defesa esburacada que vocês têm, se passar um boi passa uma boiada!

 

 “Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, torcida brasileira... Palmeiras e Corinthians, Corinthians e Palmeiras, duas lendas vivas da história do futebol brasileiro, prontos para mais uma batalha” — anunciava a voz grave do locutor.

Jogo duro, tenso, mas jogado na bola, com poucas faltas e lances de perigo. José e Fernando roíam as unhas, bebiam uma cerva atrás da outra, mas pouco falavam, apenas para criticar os craques de ambas as equipes.

 

 “Bola com João Paulo pela meia direita. O atacante corintiano avança, dribla um, dribla dois, cruza na área, Felipe sai mal! A bola sobra pra Tonhão, mata no peito e fuzila! Gooooooool do Corinthians! Explode a pequena fiel torcida presente no estádio do Ibirapuera!

 

— Fala agora! Fala agora, seu convencido! — exultava Fernando, aumentando o som da holotevê até o último volume. Impassível, José não abria a boca. Assistia calado, o Verdão tomar um gol bobo no fim do primeiro tempo.

 

 “Abrem-se as cortinas e começa o segundo tempo, torcida brasileira! Agüenta coração palmeirense: Um para o Corinthians, Zero para o Palmeiras. Se este resultado se mantiver o Timão estará na próxima fase do Brasileirão, mas não só isso,  os saudosos corintianos comemorarão o trigésimo título paulista da história do clube, depois de vinte e sete anos na fila!”

 

— Vamos lá Palestra! Não me dê essa vergonha! — implorou José, preocupado ao ouvir a dramática narração do locutor.

— Hoje, não tem jeito, Zé! Vamos meter o segundo e levar a Taça já, já.

 

 “Ataca desesperada a equipe palmeirense. Tome chuveiro aqui, tome rebatida ali da defesa alvinegra. Donizetti arranca pela ala esquerda, tabela com Escurinho, dribla Henrique, mete entre as canetas de Aloísio, tá na área, tá na área, é o empate alviverde chegando! Vem por trás Denilson, que é isso!? Pênalti! Tem de ser expulso! Entrada violentíssima!”

 

— Puta-que-pariu! — Xinga desesperado Fernando.

 

 “Donizetti quebrou a perna esquerda na entrada desleal de Denilson! Onde estamos, torcida brasileira? Chamem a polícia!” — exagerava o locutor Fiori Gigliotti Neto, que herdara do avô um talento indiscutível para a narração esportiva.

 

Cinco minutos depois, Donizetti voltou com uma perna perfeita instalada no lugar da antiga. Foi-se o tempo dos jogadores de carne e osso. Andróides meus amigos, apenas andróides praticavam esportes violentos e apaixonantes como futebol. Aos cidadãos orgânicos era vedado o contato físico em esportes coletivos. Muito mais por razões culturais de uma sociedade sedentária do que propriamente esportivas. Isso apesar dos avanços incríveis da medicina que prolongavam em muito a expectativa de vida das pessoas.

— Sabe, eu preferia que o Donizetti não voltasse. Pô, não consigo me acostumar com isso. O cara quebra a perna, troca a dita cuja e ainda vai marca o gol...

— Se não fosse pelo meu Palmeiras, até concordava com você, Fernando. Mas, sabe como é: vale tudo pra detonar o velho gambá da marginal sem número!

 

 “Depois de substituir a perna avariada, Donizetti, camisa nove do Verdão, ajeita a bola na cal. Mira nos olhos o arqueiro Tobias. Toma distância.... bateu rasante no canto direito é gol! Gooooooool do Palmeiras! Aos 27 minutos de bola corrida no segundo tempo, tudo igual no Ibirapuera, um a um no placar.”

 

A esta altura os ânimos dos velhos companheiros José e Fernando estavam mais que exaltados. Evitavam até olhar na cara um do outro. Eram um exemplo vivo e raríssimo da velha rivalidade dos dois maiores times de futebol de São Paulo no século XX.

    

 “Agüenta coração! Faltam apenas cinco minutos para o fim da partida. Com este empate, ambos estão desclassificados da próxima fase do Brasileirão e o título paulista fica para o Juventus, com um ponto a mais na classificação. Será que dá Timão? Será que dá Verdão? Ambos queimam, desesperados, os últimos cartuchos, antes que a torcida grená da Mooca solte os fogos por mais um título...”

 

José e Fernando olham um para o outro e suspiram. Juventus campeão paulista?! Parecia piada, que o ‘moleque-travesso’ saco-de-pancadas do século passado, tivesse um dos melhores times do Brasil, cem anos depois.

 

Mas nem tudo estava perdido: “Bola com Donizetti, dribla um, passa para Julinho, chuta de longe.... espalma Tobias! Uma defesa fantástica do goleiro corintiano!”

 

 “Escanteio batido, sobe de cabeça Escurinho no primeiro pau... é gol! Gooooooool do Palmeiras! No finzinho do jogo!  Não dá tempo pra mais nada. Palmeiras campeão paulista! Finalmente depois de vinte anos! Entram em desespero os jogadores e os poucos torcedores alvinegros presentes no Ibirapuera! Desfraldam as bandeiras e não contêm sua alegria a galera palmeirense.”

 

Na casa do corintiano Fernando os sentimentos misturavam-se entre júbilo e desolação.

O oriundi de terceira geração José Gagliardi via emocionado as comemorações que rolavam já no gramado verde do Ibirapuera. O antigo membro da Gaviões da Fiel segurava a emoção para não chorar de pura decepção por amargar mais um ano na longa espera por um campeonato.

— Fernando, vem cá meu amigo! Meu time é campeão, mas ainda há esperança para nós enquanto o meu time ou até o seu tiver a chance de ganhar algum título — consolou José, sem conter, contudo, um sorriso de orelha a orelha no rosto enrugado.

Fecharam-se as cortinas e terminou o espetáculo: Abraçaram-se, enxugaram as lágrimas. Da alegria verde de um, da tristeza preto e branca do outro. Beberam mais algumas cervejinhas e naquele dia mesmo, reviram com carinho os holoteipes preciosos, da época distante em que seres humanos de carne e osso disputavam os clássicos do verdadeiro futebol.

 

 

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