A ORGANIZAÇÃO DO DR. LABUZZE

O presente artigo ensaia uma interpretação de um dos clássicos indiscutíveis da ficção científica brasileira, o conto "A Organização do Dr. Labuzze", incluído em Diário da Nave Perdida , de André Carneiro. Não se trata, bem entendido, de explicar o sentido da obra, fosse isso possível, mas apenas de explorar uma das infinitas possibilidades de leitura abertas pelo texto. A perspectiva aqui adotada é a de uma interpretação simbólica dos elementos do conto, encarando-o como uma espécie de parábola ou alegoria da condição humana. Obviamente, isso não implica que a intenção de André Carneiro fosse escrever uma parábola ou que esse sentido alegórico estivesse presente em seu espírito ao trabalhar no conto, mas apenas que a história deixa-se ler a partir desse ponto de vista.

Para resumir, o conto tem a forma de um diário escrito por um jovem técnico, contratado a peso de ouro pela misteriosa organização do Dr. Labuzze. Ele se muda para as instalações dessa organização, mas os dias passam e o equipamento de que precisaria para trabalhar nunca chega. O quotidiano da organização parece mais o de um hotel - ou sanatório - que o de uma indústria. As pessoas passam o dia passeando, tomando Sol, jogando xadrez, sem nada para fazer. Periodicamente, são submetidas a exames médicos. Os assistentes do Dr. Labuzze estão sempre vestidos de branco, como enfermeiros. Débora, uma moça apática pela qual o protagonista se sente atraído, afirma que o lugar foi preparado para se parecer a um hospício. Um dos internos, o Dr. Haveloque, diz ao protagonista que o Dr. Labuzze é um extraterrestre vindo de outro planeta para fazer experiências e talvez escravizar os terráqueos. Evidentemente, o protagonista não acredita. Uma noite, porém, ele vê o doutor e dois assistentes entrando em um disco voador prestes a decolar. Depois de algumas investigações, com as quais constata apenas que o Dr. Labuzze desapareceu e ninguém sabe onde está, consegue fugir do sanatório. Incapaz de se readaptar à vida normal e após consultar dois psiquiatras que lhe diagnosticam um desequilíbrio nervoso, decide voltar à organização do Dr. Labuzze, apenas para encontrar o prédio abandonado e todas as pessoas desaparecidas.

"A Organização do Dr. Labuzze" é ocasionalmente citada como um exemplo de ficção ufológica devido à visão do disco voador. Dentro dessa ótica, seria fácil concluir que o doutor é realmente um extraterrestre que alimenta sinistras intenções para com a humanidade - o que, diga-se logo, apenas empobreceria o conto, reduzindo-o a uma narrativa-clichê sobre invasores do espaço. Felizmente, André Carneiro é um autor experimentado o bastante para evitar essa armadilha simplista. A história é contada na primeira pessoa e acompanhamos todos os acontecimentos pelos olhos do protagonista, cuja sanidade repousa apenas em nossa decisão de aceitar sua palavra. Ninguém pode garantir que ele não seja realmente um louco a distorcer os fatos de maneira mórbida e doentia. O narrador inseguro e pouco confiável é uma figura comum na ficção contemporânea e o próprio André Carneiro é useiro e vezeiro em explorar as ambigüidades do real, como demonstra outro conto da mesma coletânea, o excelente "O Homem que Hipnotizava". Entretanto, não se deve simplesmente inverter a posição e concluir que o protagonista é um doente mental. Não se deve concluir . A força do conto deriva justamente das possibilidades que ele deixa em suspenso. Qualquer redução da incerteza só faria diminuir essa força e enfraquecer o impacto da história.

De fato, a impressão que fica ao final é a de uma sensação de irrealidade compartilhada por leitor e personagem: "Já não acredito no que meus olhos observam. Olho a porta do quarto, fecho a luz, ela desaparece. E as perspectivas, ilusões de ótica. As imagens no cinema se movem, no celulóide estão paradas. De que me serve a palavra para traduzir pensamentos? Escrevo tudo isto para exprimir o quê?" Essa sensação se apresenta sob dois aspectos complementares. De um lado, a impressão de que o mundo quotidiano é ilusório: "Agora percebo que a vida é um subterrâneo de espelhos, dela eu enxergava uma casca enganadora. Como eu devia ser cacete com minúcias e certezas. Agora não confio em mais nada." Do outro, é o próprio sujeito quem aparece a si mesmo como irreal: "Dirigi-me frente ao espelho grande do meu guarda-roupa e olhei-me. Depois de alguns minutos, já estava conseguindo me ver como a um estranho. O que valia o testemunho daquele homem de barba por fazer, tão pretensioso nas suas certezas! [...] O que valia o vulto do espelho? Como trabalharia aquele cérebro, que importância teria a sua memória, as suas convicções? Sinto que já não sou o mesmo."

É fácil reconhecer nessa descrição o fenômeno que os psiquiatras denominam despersonalização ou desrealização , e que Schilder assim define: "Uma condição na qual o indivíduo se sente totalmente diferente de um jeito de ser anterior. Essa mudança inclui tanto o ego quanto o mundo externo e tem como resultado o fato de o indivíduo não se reconhecer como uma personalidade. Suas ações parecem-lhe automáticas. Como um espectador, ele observa suas atividades e feitos. O mundo externo aparece alienado e novo e perdeu sua realidade." Para James Hillman, analista pós-junguiano e criador da psicologia arquetípica, a despersonalização pode ser encarada como uma perturbação na relação entre o sujeito e sua anima, uma vez que esta é o arquétipo responsável pela ponte entre a realidade psíquica e o mundo exterior. A hipótese de Hillman vai ao encontro da apatia de Débora que, como única personagem feminina do conto, toma para si a função de representar a anima: "Débora deve estar doente. Tenho-a acompanhado à distância todos estes dias e cheguei à conclusão de que ela não trabalha. Posso dizer isso porque eu também não estou trabalhando ainda."

Mas a despersonalização não é apenas um estado patológico presente em uma ampla gama de síndromes mentais. Trata-se também do objetivo a ser alcançado na primeira etapa de praticamente todos os métodos ocidentais e orientais de meditação. Como a finalidade desses métodos é levar o sujeito a ter uma experiência imediata do real, começa-se por afastá-lo da realidade ilusória na qual ele se vê enredado. Assim, por exemplo, o budismo dispõe de um leque de contemplações e visualizações destinadas a conscientizar o sujeito da insubstancialidade do mundo e da falta de essência do eu, ambos impermanentes e ilusórios. Da mesma forma que o personagem de André Carneiro, o praticante budista aprende a ver primeiro seu próprio corpo e depois sua personalidade como estranhos a si: "Isto não é meu, eu não sou isto, isto não é meu eu." Se André Carneiro utiliza a metáfora da hipnose, o Buda recorre uma imagem semelhante, a do mágico: "É como quando um prestidigitador se instala em um lugar concorrido e dá um espetáculo. E um homem que tem boa vista olha bem a prestidigitação e a examina com cuidado. E examinando-a com cuidado, vê que bem vista ela é oca, vazia e sem substância. Que substância pode ter em verdade a prestidigitação? Da mesmíssima maneira, monges, quem examina com cuidado a consciência, seja passada, presente ou futura, própria ou alheia, densa ou sutil, baixa ou elevada, próxima ou remota, vê que bem vista ela é oca, vazia e sem substância. Que substância pode ter em verdade a consciência?"

A consciência é o eu, é portanto o prestidigitador, que cria um mundo ilusório de nomes e formas nos quais o sujeito se aliena de Si-mesmo. E quem seria a personificação desse eu no conto, senão o próprio Dr. Labuzze? De fato, em algumas parábolas orientais e nos mitos gnósticos dos primeiros tempos do cristianismo, o ego é personificado sob a forma de um falso demiurgo, uma potência cósmica usurpadora que se apresenta ao homem como deus e criador do universo. Esse demiurgo é uma imagem arquetípica cujos atributos se encontram por trás de todas as personificações do mal na literatura, inclusive aqueles tiranos e ditadores da ficção científica cujo protótipo é o Dr. Mabuse de Fritz Lang, a partir do qual André Carneiro provavelmente batizou seu personagem.

Uma característica fundamental das imagens arquetípicas é, no entanto, sua ambivalência. Reduzir a figura do demiurgo unicamente ao pólo negativo seria incorrer em maniqueísmo. Como o Darth Vader de Guerra nas Estrelas , o demiurgo é um símbolo reversível. Dentro de uma perspectiva junguiana, o ego é um reflexo distorcido do verdadeiro ser do sujeito, que Jung denomina de Si-mesmo ( Selbst ) e que equivale ao Brahman hindu. Pela observação atenta do ego, é possível remontar ao Si-mesmo, de modo a contemplar face a face aquilo que hoje vemos em espelho. É por isso que a meditação budista consiste em observar os processos fisiológicos e psíquicos que compõem a personalidade. De maneira semelhante, o guru indiano Sri Ramana Maharshi recomenda como caminho para a iluminação a mesma pergunta que o protagonista da história se faz ao olhar sua imagem no espelho: "Quem sou eu?"

No conto, essa contemplação é alegoricamente representada pelo narrador escondido, vigiando enquanto o Dr. Labuzze entra no disco voador: "Reconheci o Dr. Labuzze. Alguns passos atrás, apareceram mais dois homens, seus auxiliares imediatos. Todos se encaminhavam para o portão de saída, disseram algo ao porteiro e pude vê-los em uma curva do caminho, dirigindo-se para o local da luz alaranjada, que eu via bem maior, devido ao ângulo superior em que me achava." De acordo com Jung, os discos voadores são o símbolo que nossa moderna cultura tecnológica criou para o Si-mesmo. E a luz alaranjada que o objeto emite, não por acaso a mesma cor das túnicas budistas, denota a reintegração do eu a suas raízes arquetípicas. Na linguagem budista, trata-se da iluminação . A cena do OVNI, contudo, apenas prefigura essa possibilidade. A iluminação propriamente dita, o conto não a simboliza, interrompendo-se na primeira etapa - no homem que se detém diante do espelho, identidade perdida, sem ter encontrado seu ser.